segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O MARINHEIRO NAVEGA NOS SONHOS

Na penúltima edição deste ano do projeto Cena Literária, à tardinha do dia 25.11, tivemos a oportunidade de assistir a uma intrépida proposta cênica apresentada pelo Teatro Escola de Pelotas. Calcada num denso texto de Fernando Pessoa – aliás, parece ser um dos autores preferidos pelo TEP – a apresentação adaptou cenicamente trechos da obra O Marinheiro, escrita por ele em 1913, portanto, há 96 anos. Não se trata, contudo, de um conto de época, ao contrário, é atemporal, pois mostra um distanciamento da realidade. Distanciamento que as personagens vão procurar durante todo o tempo. Permite conhecer de onde vem a inspiração de Fernando Pessoa, que com 24 anos escreveu esta peça em dois dias. Mostra-nos a sua intuição, a sua visão daquilo que viria a ser a sua vida de artista, de tormento e de sofrimento. A ideia central da peça é fugir à realidade, que faz com que as personagens pareçam, de certa forma, fantasmas ou sonâmbulos.

O Marinheiro responde melhor aos preceitos do simbolismo, que vem a ser o modo pelo qual os desejos, conflitos e tendências inconscientes adquirem representação indireta e figurada, tanto no indivíduo como na cultura (na linguagem, nos mitos, costumes, etc.). A propósito, não é fácil falar de Pessoa sem que nos percamos. Também o minimalismo está presente em Pessoa. Tudo reduz ao essencial, subtrai todos os floreados. O Marinheiro, que o próprio autor classifica de texto de êxtase, é um “drama estático” de pouca movimentação, mas de profundas conjeturas. Nele, a oposição é entre a vida e o sonho. Existe a vida, porque esta vida equivale à morte.
Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Pessoa) diz que temos duas vidas – a verdadeira, que sonhamos em criança, e a falsa, a prática. Morre-se, porque não se sonha bastante. Elas fogem da vida, como quem foge da morte. Viver esta vida ao rés-do-chão equivale a morrer. Por outro lado, elas querem esta vida. “Na vida aquece ser pequeno” – o que assistimos ao longo da peça é a hesitação entre querer fugir da vida e um ritual (toda a peça é um ritual, um ato mágico) em que, através do sonho, elas querem voltar ao Eu Primordial, ao Ser Lar. Ser Lar é Deus. Fernando Pessoa é completamente heterodoxo nas suas crenças – “creio ou quase creio”. Isto faz com que nunca tenha sido um fanático.

Na peça, a palavra-chave justamente é distanciamento. Realmente, a nós, espectadores, parecia que as três personagens estavam fora da nossa realidade. Afora o vestuário provocativo, cuja uniformidade branca, também notada no reduzido cenário, incluiu uma criativa dualidade contraditória entre o conservador, especialmente na face, lembrando freiras, e o sensual, que mostrava os ombros nus, e as velas, que davam uma idéia de luz e sombras, nada mais parecia haver de alegórico. O lugar é um quarto que poderia representar um castelo antigo. As personagens não se distinguiram, a não ser pela diferença física entre elas. Não houve conflito(s), elas se ajudavam, eram solidárias em fugir da vida, na ambígua subjetividade de seus sonhos, parecendo não estar no mundo dos vivos. Elas estavam quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar. Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, as outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como um resto vago de luar.

Para uma ideia da peça, eis alguns trechos:
Primeira Veladora: - Ainda não deu hora nenhuma.
Segunda Veladora - Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.
Terceira Veladora – Não, o horizonte é negro.
Primeira - Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso...
Segunda – Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?
Primeira - Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...
Numa dada altura da peça elas dizem “Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho…” e falam do frio, esse frio que chega dessas tais regiões isoladas e, por isso, querem o conforto da vida. Este sonho das veladoras é muito complexo. Às vezes chegamos a ter a sensação que as veladoras são médiuns – “Que voz é essa com que falais?… É de outra… Vem de uma espécie de longe…”.

Analisando o espetáculo, a complexidade do texto exigiu o envolvimento e a capacidade interpretativa das três atrizes que, de fato, puderam expressar toda a dramaticidade proposta pelo autor. Sob a direção de Fabrício Gomes, que assinalou ao final o caráter de estudo da peça, e com o TEP pretende ganhar maior dimensão e profundidade, as atrizes Cássia Miranda, Eliz Eslabão e Sandra Viégas, demonstraram que o teatro de Pelotas continua a despertar estudo, interesse e participação, através de um efetivo desempenho. O TEP, mais uma vez está demonstrando a inequívoca participação no cenário teatral de Pelotas, ao lado de outros bons grupos que militam nesta área cultural. Está faltando, entretanto, maior valorização dos consumidores para o que está sendo produzido em nível local. Por isto, o convite para que prestigiemos os espetáculos promovidos, uma vez que merecem o nosso comparecimento e prestígio. Em 16 de dezembro, ocorrerá última edição do ano do Cena Literária. Não percamos. Somos contemplados com bons momentos de lazer cultural, e ainda mais com entrada franca. Aproveitemos, pois.

Vitor Azubel, integrante do CCETP

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