terça-feira, 2 de outubro de 2012

Histórias de uma Atriz Negra



Inicialmente, a história do teatro brasileira restringia os negros à plateia, quando podiam pagar, ou a personagens estereotipados, interpretados por atores brancos que maquiavam sua pele para interpretá-los. Obviamente que, envolto a isso, temos todo o contexto social brasileiro de uma época. Porém, foi graças ao pioneirismo de Abdias do Nascimento e Ruth de Souza, com o seu Teatro Experimental do Negro (TEM), criado em 1944, que esse panorama começou a ser modificado.

Em outro texto, já abordei a questão do papel do negro no teatro contemporâneo. Por esse motivo, não me deterei a ela aqui. Entretanto, não podemos esquecer e sempre deixar de lembrar a importância da atriz Ruth de Souza ao teatro brasileiro. Graças a sua coragem, determinação, talento e persistência, ela conseguiu consolidar sua carreira como uma das maiores atrizes brasileiras, além de abrir espaço para que muitas outras mulheres negras pudessem subir aos palcos como profissionais das artes cênicas, sendo respeitadas pela sua competência.

No dia 28 de setembro de 2012, foi apresentado, no Teatro do COP, o espetáculo “No Palco Ruth de Souza”. As atrizes Lucila Clemente e Kaya Rodrigues dividem o palco para contar a história de uma das figuras mais importantes da história recente do Brasil. O espetáculo em tom de memória, perfaz de maneira sintética a trajetória de carreira e vida pessoal de Ruth de Souza. O texto/concepção/direção/trilha sonora de Lucila Clemente e Josiane Acosta surgiu ainda quando as duas jovens atrizes estavam na faculdade de teatro, como seu trabalho de conclusão de curso. Talvez por esse motivo, se observe algumas fragilidades relativas a esses quesitos.

Não me aterei tanto a fazer uma minúcia técnica sobre os problemas existentes no espetáculo, em respeito à personagem tema da história. Entretanto, não posso deixar de comentar que a imaturidade artística das atrizes conferiu uma tonalidade de demasiada leveza à história de uma mulher que, com certeza, deve ter enfrentado e ainda enfrentar os piores preconceitos em relação ao seu percurso pessoal e profissional. Percebo que as atrizes desejaram fazer uma homenagem à Ruth e queriam que a peça tivesse um caráter alegre. No entanto, se fazia necessário prestar um pouco mais de atenção às dificuldades que ela enfrentou ao longo dos anos.

As projeções de vídeos com fotos e cenas de Ruth de Souza foram muito bem exploradas. Na verdade, a força cênica dessa atriz é tão grande que acabava criando um problema a Kaya e Lucila, quando terminavam os vídeos e voltávamos à cena teatral. A comparação acaba sendo inevitável e também não podemos esperar que duas atrizes tão jovens consigam se igualar à experiência de Ruth de Souza. Paradoxalmente, não quero dizer que as atrizes não sejam competentes. Muito pelo contrário, fazem valer a sua jovialidade e energia para segurarem esse espetáculo durante os quase 60 minutos de performance.

Por outro lado, vou citar apenas mais uma situação que se refere ao canto em teatro. Já comentei isso algumas vezes, pois acredito que o canto exige uma série de questões, tais como, técnica vocal, musicalidade, interpretação, emoção e etc... Entretanto, sempre temos que ter o discernimento das diferenças entre atores e cantores. Em um espetáculo de teatro, o ator pode cantar de maneira dissonante, com técnica falha, sem musicalidade, desde que isso esteja dentro de um contexto específico da história e do seu personagem. Caso contrário, apenas salientará a sua desafinação e falta de talento musical.

No caso desse espetáculo, as atrizes foram muito corajosas em cantar à capela em alguns momentos, talvez tentando mostrar um caráter  informal ao momento da peça. No entanto, estando em frente ao público, não há espaço para se utilizar a informalidade como defesa de nossas fragilidades técnicas. Acredito que os problemas observados nos momentos de canto, poderiam ser contornados se as atrizes fossem acompanhadas por músicos tocando ao vivo, já que um playback mecânico exigiria um potencial vocal muito maior.

Apesar de Pelotas ser uma cidade com uma expressiva população negra, não vi muitos negros no teatro naquela noite. Aliás, mesmo o espetáculo sendo gratuito, o teatro não estava nem cheio. Quem perdeu foi o público que deixou de ver uma apresentação teatral que contou a história de uma das atrizes mais importantes desse país.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
 vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

O Lugar do Negro no Teatro Brasileiro Contemporâneo




Atualmente, com o avanço das discussões sobre a discriminação étnica e das Leis anti-racismo, a população negra começou a reivindicar os seus direitos perante à sociedade brasileira. No entanto, no que se refere ao mercado de trabalho para atores negros, apesar de terem ganho um pouco de visibilidade, esta ainda é ínfima, comparada à proporção de negros no contingente populacional brasileiro.

Embora algumas pessoas justifiquem que estejam vendo mais atores negros nas telenovelas fazendo personagens que não sejam apenas de escravos, motoristas, criminosos e empregadas domésticas, o padrão estético determinado pela grande mídia para a escolha desse elenco se pauta em traços de beleza caucasianos. Essas características são bastante discretas, mas vão desde à tessitura vocal ao formato de nariz, cabelos, tom de pele, tipo físico e etc... Além disso, os personagens costumam vir carregados de uma justificativa étnica para lá estarem, ou seja, se for um médico negro, haverá um conflito em torno da cor de sua pele, não sendo possível que apenas seja um médico que por ventura é negro.

 Outra justificativa que os defensores da mídia podem utilizar, se refere ao fato de que existem muitos atores negros em evidência na televisão brasileira. Porém, comparando a realidade étnica brasileira e a diversidade que se observa nas ruas, você continuará pensando que a proporção de atores negros na TV reflete à realidade brasileira? Ou será apenas uma obrigatoriedade para cumprir uma mera quota de conformismo com as oportunidades igualitárias? Será que os negros não geram audiência e consumo? O que ocorrerá no dia em que os negros resolverem ter a coragem para mudar de canal e buscarem uma programação que realmente os inclua e os trate de maneira igualitária?

No entanto, meu foco aqui não se direciona à TV. Todavia, não podemos falar sobre oportunidades de trabalho para atores negros, sem citarmos as mídias de massa. Nesse sentido, ainda refiro os personagens negros que atualmente aparecem no cinema nacional. As mesmas reflexões que citei anteriormente se referem à sétima arte. Contudo, acredito que, no que tange aos personagens, o cinema brasileiro ainda está um passo atrás, já que grande parte dos filmes brasileiros colocam o negro apenas numa situação marginalizada. Não quero dizer com isso que essa realidade não seja verossímil. Porém, será que é a única?

Quando falamos em teatro, o ponto de análise se altera, pois as imposições midiáticas não chegam a afetar a grande produção teatral. Entretanto, no que se refere ao teatro comercial, em especial àquele produzido no grande eixo Rio-São Paulo, as normatizações estéticas da televisão costumam determinar as escolhas de elenco. Apesar disso, devido ao caráter democrático que o teatro costuma apresentar, temos a possibilidade de ver um contingente maior de atores negros em cena. Mesmo assim, a proporção de atores brancos costuma ser maior.

Essa situação nos leva a refletir sobre quais motivos tornam esse fato uma realidade. Obviamente, não podemos deixar de ter em mente que há séculos a população negra sofre um processo de discriminação, exclusão e marginalização étnica em nossa sociedade. Além disso, apenas há algumas décadas estão ocorrendo avanços civis sobre esse assunto. Nesse sentido, devemos sempre ponderar sobre as oportunidades num sentido global, uma vez que envolvem aspectos que não se relacionam somente ao mercado de trabalho artístico, mas também à educação, moradia, saneamento e etc... Muitas pessoas podem contestar dizendo que esses fatores não estão diretamente relacionados ao desempenho profissional no teatro. Todavia, devemos ponderar que, do nosso confortável ponto de análise, as condições sociais podem ser as mesmas para quaisquer etnias. No entanto, ao colocarmos o advento histórico nessa balança, será que não teríamos um lado étnico mais sobrecarregado?

Desse modo, a luta pela sobrevivência e pelo espaço igualitário na sociedade acaba levando os negros a buscarem alternativas mais imediatas de subsistência. Além disso, as oportunidades artísticas costumam estar localizadas em pontos sociais distantes da realidade dessas pessoas não somente no aspecto geográfico, como também de identificação. Talvez os motivos que expliquem o pouco contingente de atores negros nos palcos brasileiros, em relação à proporção populacional, estejam ligados a esses fatores.

Sob esse ponto de vista, também gostaria de salientar a escassez de uma produção dramatúrgica voltada ao teatro que contemple temas relacionados à etnia negra que não sejam aqueles que falem apenas de sua marginalização social, escravidão ou as mesmas abordagens dadas pela TV e pelo cinema nacional. Da mesma forma que os gregos e outros tantos povos souberam transformar suas mitologias em teatro, a mitologia brasileira, de origem africana também deveria receber esse tratamento.

Obviamente, que os fatos históricos, a colonização brasileira e os conceitos ainda arraigados em princípios de uma moralidade religiosa dos tempos em que o Brasil ainda não era um estado laico segundo à Lei, abarcaram todo um processo de opressão para manter a cultura negra longe dos limites história oral. Nesse sentido, acredito que essas histórias ainda precisam ser escritas e firmadas na dramaturgia teatral brasileira.

Porém, gostaria de salientar que esse discurso não está demarcando o ramo de atuação dos negros para espetáculos que abordem suas origens étnicas e  religiosas. Muito pelo contrário, acredito que esse pode ser um dos caminhos de identificação para atrair uma fatia de público que costuma estar à margem das histórias que lhes são apresentadas e a partir daí, quem sabe, oportunizar-lhes uma perspectiva de identificação e auto-estima. Além disso, também acredito que os atores negros devam lutar pelo seu espaço para fazerem personagens que não venham com a descrição “negro” no texto original, pois se a característica étnica não é o conflito principal daquele personagem em determinada história, não existem limitações para que apenas as pessoas de origem caucasiana tenham o direito de representá-los.

Contudo, não podemos deixar de ponderar sobre o aspecto de que sempre é colocado sobre os ombros da população negra a responsabilidade por lutarem pelos seus direitos e espaços na sociedade. Esse ponto de vista é confortável e cômodo aos indivíduos de outras origens étnicas, uma vez que, numa análise simplista, não precisariam alterar em nada suas condutas sociais e profissionais para permitirem a igualdade de direitos e oportunidades para todos os cidadãos. Desse modo, reitero o foco desse texto ao mercado teatral para os atores negros no Brasil, uma vez que não devemos jogar a responsabilidade da pouca proporção de atores negros nos palcos, apenas ao fato deles não lutarem pelo seu espaço nesse mercado de trabalho. Essa seria uma visão alienada e ingênua. Cabe sim aos espectadores negros exigirem sua retratação nos palcos, aos atores negros terem o seu devido espaço, mas acima de tudo, aos artistas que trabalham nesse mercado abrirem as oportunidades para que os personagens sejam tratados apenas como seres humanos. Sendo assim, a origem étnica do profissional que o interpretará será desconsiderada, já que o personagem será tratado pela sua essência humana.

No entanto, não quero que as duas últimas frases do parágrafo anterior sejam distorcidas, uma vez que essa foi a justificativa para que durante muitos anos atores brancos maquiassem a sua pele com o intuito de interpretarem personagens negros. Quando falo em personagens negros, me refiro a histórias em que o contexto étnico dessa personagem se torna a essência de seu mote conflitual. Realmente, o palco é o lugar mais democrático, onde todos artistas podem ser quem a história precisar que eles sejam. Mas, isso não quer dizer que esse argumento se torne uma justificativa para enfatizar o processo de exclusão social de raiz étnica que temos em nosso país. Sendo assim, quando o foco da existência daquele personagem não for o conflito social gerado em função da sua etnia, não haveria justificativa para que os personagens fossem pensados numa lógica caucasiana. Com isso, enfatizo que a escassez de atores negros nos palcos também se deve à necessidade de mudança na perspectiva que os próprios artistas do teatro têm em relação aos personagens das peças de teatro.

Portanto, gostaria de finalizar esse texto, em que levantei algumas reflexões sobre o lugar do negro no teatro brasileiro contemporâneo, reiterando a necessidade de que sua história e tradições sejam tradas com o respeito e a importância que merecem, sem olhar vertical determinado pela a cultura caucasiana nos palcos, TV e cinemas do Brasil. Além disso, também saliento o fato de que os negros precisam fazer valer o seu valor como geradores de consumo, audiência e presença na sociedade. Dessa forma, acredito que a ponderação sobre os fatos aqui levantados possam ser apenas alguns poucos pontos de vista que nos levem a refletir sobre número de atores negros que vemos nos palcos brasileiros.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.