Os temores, conflitos e ansiedades que perseguem os atores antes de entrarem em cena, conduzem ao mote inicial do espetáculo “O Terceiro Sinal”, apresentado pela Cia BR-116, no dia 02 de junho, no Teatro Guarany, em Pelotas/RS. O monólogo conta com a brilhante atuação da atriz Bete Coelho, texto de Otávio Frias Filho e direção de Ricardo Bittencourt.
O terceiro sinal foi convencionado no meio teatral como o último toque para avisar ao elenco e plateia que o espetáculo irá começar. Nesse sentido, o autor Otávio Frias Filho resolve descrever como são vividos pelos atores os últimos momentos antes de entrarem em cena. Para tanto, Otávio se colocou na experiência de ingressar no elenco de uma peça de teatro, três dias antes da apresentação, dirigida por um dos maiores diretores de teatro do Brasil: José Celso Martinez Correa. Em sua vivência, que originou o livro “Queda Livre: Ensaios de Risco”, o escritor não apenas retrata o trabalho dos atores, bem como desmistifica ao grande público certos detalhes dessa profissão, ao revelá-los para o leitor não apenas como uma mera descrição, mas, também, tecendo uma reflexão sobre o exercício da profissão de ator.
Em uma das frases ditas pelo personagem, o autor refere que “O palco é o lugar onde a humanidade discute os seus maiores problemas”. Assim, por meio de uma reflexão das dificuldades e peculiaridades do trabalho dos atores, Otávio oferece ao espectador o estímulo para repensarem seus dilemas diários e de como se colocar à prova em novas experiências. A adaptação do livro para o teatro foi muito bem feita, extraindo de maneira precisa o que era essencial para contar essa vivência, transformando o autor do livro em personagem-ator de uma peça de teatro.
Obviamente que o público em geral se diverte com o espetáculo, pois a história prende a atenção do espectador, apresentando um universo dos bastidores que é desconhecido para as pessoas que não lidam com teatro. Porém, acredito que, para atores e pessoas ligadas às artes cênicas, a peça forneça uma empatia a mais, uma vez que a identificação com várias situações vividas por aquele ator são inevitáveis. Além disso, são citados alguns referenciais teóricos que explicam o trabalho dos atores muitas vezes de maneira paradoxal, ao passo que somente os profissionais dessa área conseguem entender esse ofício. Entretanto, o riso se torna inevitável a qualquer pessoa, tanto para aqueles que estão conhecendo pela primeira vez os dilemas do trabalho dos atores, quanto dos profissionais desse setor que se vêem retratados virtuosisticamente por meio da excelente atriz Bete Coelho.
A direção de Ricardo Bittencourt é precisa e limpa. Em um espetáculo que utiliza a metalinguagem para falar do ofício teatral, o diretor não apenas dirige as cenas, como também está presente durante o espetáculo. Evidentemente, dirigir Bete Coelho deve trazer uma certa tranqüilidade ao diretor, uma vez que há a certeza de que a atriz irá conduzir qualquer situação com maestria. No entanto, quando se está diante de um talento dessa qualidade, somente um grande diretor para conseguir chegar ao nível de qualidade do trabalho dessa artista. Porém, Ricardo se define como ator e, acredito que justamente por isso, sua mão foi tão precisa nesse espetáculo, já que a discussão proposta se refere às peculiaridades do dia a dia desses profissionais.
O fato do cenário utilizar em alguns momentos as projeções como seu aliado, desvelar os bastidores de rotunda e coxias trouxe ao espectador a ilustração de que a peça versaria por meio de uma metalinguagem. Desse modo, o público percebia quando o ator estava em cena, quando saía aos bastidores durante a apresentação e quando estava fora do palco antes da performance. Esse jogo cênico criava uma empatia envolvente com o público que não dava vontade de piscar para não perder nenhuma das situações. A dinâmica criada pelo diretor, mesclando as cenas de maneira ágil, afastava totalmente o ar monótono que costuma ocorrer em alguns monólogos. Além disso, o fato de Bete contracenar rapidamente com o diretor e equipe técnica durante o espetáculo propiciava um olhar diferente e distanciado do convencional aos espectadores. Outro aspecto muito preciso foi a iluminação. De concepção muito simples, porém limpa, precisa, extremamente orgânica e funcional com as cenas. No caso desse espetáculo, podíamos perceber que a iluminação foi composta com o intuito de fazer parte da dramaturgia cênica, desempenhando um papel muito importante na criação dos ambientes e situações ocorridas ao longo do espetáculo.
Agora, tecerei alguns comentários sobre Bete Coelho. Não posso iniciar essa parte, sem citar uma frase do espetáculo que me apropriei para intitular esse texto: “O Palco Não é Lugar Para os Sem Talento”! Nesse caso, talento, competência, profissionalismo, comprometimento e dedicação são o que mais sobram em Bete Coelho. A atriz consegue brilhar em cena, não pela vaidade que muitos atores medíocres usam como sua única ferramenta de auto-afirmação, mas Bete brilha por meio de seu virtuosismo cênico. Como diríamos de maneira coloquial: “Sobrou atriz no palco!”.
Bete Coelho possui um trabalho muito sofisticado no que se refere ao primor de sua atuação. O seu preparo físico e vocal fica evidente, ao passo que se percebe que o resultado de toda essa disciplina se materializa em um trabalho limpo, capaz de envolver o público durante todo o espetáculo. Talvez essa precisão técnica seja fruto de sua formação artística, aliada ao trabalho com grandes diretores de teatro brasileiro, tais como José Celso Martinez Correa, Gerald Thomas e Antunes Filho. Observando o trabalho de Bete, podemos perceber que existem referenciais de teóricos do teatro como C. Stanislavski, J. Grotowski, E.Barba, dentre outros, que propõem certas metodologias de trabalho para que os atores desenvolvam técnicas que os possibilitem certas habilidades cênicas. Todavia, a atriz sabe utilizar esses referenciais, aliados a algumas técnicas de dança e canto para que todo o seu preparo seja sutil ao olhar dos espectadores, mas que consiga criar uma atmosfera de encantamento e empatia com o público.
Em cena, o personagem do espetáculo chega a citar que leu esses autores e, em função disso, achava que bastava ter o conhecimento teórico de algumas leituras sobre teatro para lhe capacitar como profissional das artes cênicas. Esse parece ser o primeiro grande equívoco de um leigo a se julgar como ator. Muitas pessoas, por inexperiência e falta de preparo teatral que não seja meramente teórico, costumam vivenciar as angústias tão bem descritas pelo autor da peça e muito bem retratadas no personagem do espetáculo. Alguns profissionais equivocados costumam abrir esses livros e muitos outros de referenciais teóricos em teatro, pensando que basta ler os exercícios para saberem aplicá-los e que os resultados a partir disso serão formadores de um artista. Ator é aquele profissional que tem o embasamento teórico para fundamentar o seu discurso, mas também é aquele profissional que ensina aquilo que sabe, que já viveu, experienciou e que, a qualquer momento, pode chegar ali e mostrar como se faz.
O problema de um não-artista se intitular no pioneirismo da prática teatral entre seus colegas, incorre nos equívocos cênicos e de concepção do que é o trabalho de um ator. Como exemplo dos autores citados anteriormente, se alguém pegar os seus livros, poderá sair por aí e passar horas e horas trancado em salas de ensaio gritando, se contorcendo, fazendo malabarismos, criando movimentos que são apenas repetitivos, porém vazios de matriz para o trabalho de um ator. Somente um profissional que já viveu essas situações em seu corpo e já as colocou à prova para o público consegue propor o elo de ligação entre a teoria e a realidade da vida prática de um ator. Senão, tudo fica no limiar da suposição e do equívoco. Além disso, muitas pessoas inexperientes nas artes cênicas costumam ler esses referenciais teóricos e pensar que eles são leis irrevogáveis. Entretanto, esse é justamente o primeiro pedido que todos os teóricos de teatro não fazem, uma vez que eles sempre se referem às técnicas e pensamentos que foram úteis às descobertas de seu trabalho, naquele contexto histórico e social, a partir disso, cada um abarca o seu repertório estético e vai em busca de suas verdades. Um bom trabalho em teatro não precisa estar exatamente nos moldes que você encontrará em um livro de teoria do teatro. Por esse motivo, ao observarmos Bete Coelho em cena, temos uma aula de como observar uma atriz com tanto material técnico disponível em seu corpo e tão bem utilizado.
Nada como o dia a dia em cima de um palco e na presença dos espectadores para formar um ator. O público não é idiota e sabe muito bem perceber quando uma pessoa não é competente e não serve para o ofício artístico. Bete Coelho serve tanto de exemplo para esse caso que consegue interpretar um personagem masculino, não-ator, sair e entrar do personagem fazendo com que o público perceba por meio desse distanciamento cênico suas inúmeras capacidades artísticas. Essa é a magia do trabalho de um profissional competente nas artes cênicas. A capacidade de conseguir imprimir verdade e presença cênica de maneira tão trabalhadas que pareçam naturais, possibilita ao espectador abrir o seu imaginário àquele universo criado pelo evento teatral.
Como comecei esse texto dizendo que o palco não é lugar para os sem talento, poderei finalizá-lo dizendo que, se eu pudesse criar uma lei, ela diria que no palco só poderiam pisar atores com o talento, técnica e preparo no mesmo nível de Bete Coelho. Ademais, espero que o público pelotense possa ter o privilégio de assistir a outros espetáculos com artistas dessa qualidade durante o ano inteiro.
MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com
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