sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Os “Meninos verdes” mereciam mais


Na tarde de 18 de agosto, o espetáculo “Os Meninos Verdes de Cora Coralina” foi encenado pelo grupo Voar Teatro de Bonecos, de Brasília, no Theatro Guarany. A peça, que passará por um total de 13 cidades gaúchas, integra a 3ª etapa do Circuito Sesc Palco Giratório – uma excelente iniciativa do Sesc, que tem levado diversos trabalhos de qualidade a todo o Estado e dado possibilidade a muitas pessoas de terem contato com as artes cênicas, ao mesmo tempo em que estão plantando sementinhas na formação de plateia – a colheita, esperamos, deve vir em alguns anos.


A montagem dirigida por Marco Augusto, que compõe o elenco ao lado de Laércio Nicolau, Lucia Correa e Alessandra Barros, a partir do texto original da goiana Cora Coralina teve, na minha opinião, bons e maus momentos. Não sou experta em teatro de bonecos, mas, antes de mais nada, sou espectadora e estudante de teatro e pude observar alguns acertos e outros equívocos.

Em primeiro lugar, destaco a habilidade dos bonequeiros e a escolha do texto de Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, uma das maiores contistas brasileiras, que publicou seu primeiro livro aos 76 anos de idade e morreu em 1985, aos 95. Algumas das principais características de sua literatura é a tônica poética e a simplicidade – segundo ela, e estou totalmente de acordo, o melhor caminho para se atingir a mais alta riqueza de espírito. Lirismo é, justamente, o que não falta na história dos “Meninos Verdes”: ao encontrar duas plantas diferentes em seu quintal, a Vovó Cora se nega a cortá-las e logo descobre que nelas moram estranhas criaturinhas verdes. A história trata da importância de se estar aberto ao novo e respeitar as diferenças.


Mas, se o texto era simples e belo, os bonecos simpáticos e os bonequeiros habilidosos, então o que não funcionou?


A começar pelo local. Imagino que o Theatro Guarany tenha sido escolhido pela capacidade em comportar até 1,5 mil pessoas - ainda que, lastimavelmente, menos da metade das cadeiras da plateia tenham sido ocupadas nesta ocasião. Digo “lastimavelmente” porque o espetáculo era aberto ao público e gratuito (com a solicitação espontânea de um litro de leite). Havia diversas turmas de escolas do Ensino Fundamental presentes – centenas de crianças acompanhadas por jovens professoras -, mas poderia haver muitas mais, pelo menos o dobro. Deduzo que o trabalho tenha sido pouco divulgado pela mídia local e junto às escolas.


Por outro lado, como os bonecos deviam medir entre 50cm e 90 cm, quem estava sentado da metade para trás da plateia, não tinha boa visibilidade. Este fator teve ainda um agravante: os spots de luz, posicionados de forma excessivamente vertical, iluminavam mais a cabeça e rosto dos bonequeiros, deixando a face dos bonecos, que deveriam ser “as estrelas” da montagem, muitas vezes na penumbra.


Este foi, a propósito, um dos aspectos mais negativos desta peça, na minha opinião: tratava-se de teatro de bonecos – e não sou contra a interação de bonecos e atores, quando de forma bem dosada -, mas em dado momento os bonecos perderam completamente seu espaço. Dois atores que interpretavam médicos descambaram o espetáculo para a comédia pastelão, pendendo para o estilo “Trapalhões” – explorando motivos de riso fácil e gosto discutível. Nada tenho contra o pastelão, pelo contrário, desde que esta seja a proposta, clara e definida, do trabalho. Não me parece que fosse este o caso. O modo como o espetáculo foi mudando, acabou com qualquer possibilidade de magia e encantamento que o teatro de bonecos pode proporcionar...


Desde o princípio as crianças mostravam-se abertas, afoitas por participar, mas a partir da ruptura total da “quarta parede” – momento em que os atores passaram a interagir diretamente com os espectadores - as crianças ficaram alvoroçadas, inquietas, quase todas se levantaram das cadeiras e quem não estava à frente já não via mais nada e tampouco entendia o que era falado. Os atores perderam, completamente, o controle da plateia. Muitas risadas, sim, mas do quê mesmo...?


Talvez o grupo considere sucesso este tipo de reação – as crianças agitadas, gritando, pulando, etc. Para mim, foi quando a proposta se perdeu por completo. A última cena - em que a avó Cora lamenta a ausência dos meninos verdes, sofre de saudades e eles retornam pra casa, enquanto ela dorme -, que poderia ter sido emocionante, de pura poesia, ficou quase imperceptível, apagada, perto do alvoroço anterior. Uma pena.


Ainda no meio do espetáculo, ouvi uma menina de uns nove anos perguntar à outra se ela estava gostando da peça e ela própria (a que perguntou) responder: - Eu, não.
Não acredito que tenha sido apenas coincidência, nem um caso à parte. As crianças não são estúpidas, não se pode subestimar sua inteligência. Fazê-las rir não é o mesmo que conquistá-las, que tocar seus corações.


“Os Meninos Verdes de Cora Coralina” mereciam mais. As crianças mereciam mais. Estou certa de que o grupo poderia Voar mais alto. Mas valeu.


Joice Lima – DRT atriz 013051 (Sated/SP)
Acadêmica de Teatro (Licenciatura) - UFPel
Integrante do CCETP

3 comentários:

  1. Nâo lembro de ter visto um anúncio ou reportagem dessa peça. Talvez a publicidade foi feita só para escolas.
    A interação com crianças deve ser com atores mesmo, a não ser que os bonecos sejam os donos da cena. Mas aí se requerem grandes atores por trás dos bonecos. Deu no que deu.
    Os erros teatrais são bem comuns em companhias não acostumadas a viajar pelo Brasil.
    Havia adequada amplificação de som no Guarani?

    Texto bom e claro, inclusive se referindo ao conteúdo da peça e não só às formas.

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  2. Oi, seu Francisco, agradeço o comentário. Com relação ao som durante o espetáculo, usavam microfones - o que considero necessário para o Theatro Guarany. Alguns problemas de interferência e ruído durante a apresentação, o que prejudica a "magia" do momento - isso, me parece, tem ocorrido em diversos espetáculos apresentados naquele local, mas como pouco entendo desta parte técnica, não saberia sugerir a solução. Um abraço

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  3. Joice
    Teu texto está ótimo. Fazes o serviço da peça, contextualizas, falas na autora e colocas teus comentários muito bem. Eu estava lá e também não gostei do espetáculo. Realmente, houve um erro do iluminador que não sabia que, em teatro de bonecos, os bonecos devem ser iluminados e não direcionar o foco dos holofotes para o rosto dos atores, quando esta não é a proposta. Se o grupo contratou um iluminador local, houve um amadorismo de ambas as partes. Em primeiro lugar, do grupo em permitir que alguém que desconheça a linguagem, opere a sua luz. Em segundo lugar, se o grupo possui seu próprio iluminador, este se equivocou totalmente e nem percebeu que estava vazando claridade no andar superior do teatro, o que desviava a atenção do público e não permitia que se criasse a atmosfera lúdica que o teatro de bonecos exige.
    Realmente, a interação com os atores, interpretando personagens canastrões era desnecessária. Infelizmente, o espetáculo não saiu do palco, aliás, não saiu nem de trás dos bonecos.
    Outra coisa que gostaria de comentar, foi o primeiro comentário feito sobre este texto, em que ele fala que 'erros teatrais são bem comuns em cias que não estão acostumadas a viajar..."
    Eu acredito que o hábito de turnées independe de qualquer coisa. Espetáculos incompetentes existem tanto em turnées, quanto em temporadas fixas. O problema é quem os contrata e lhes dá o aval de qualidade para circular num projeto cultural com tanto respaldo como este.

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