Tendo o texto
“A Gaivota”, de Anton Tchekhov, como referencial inicial de pesquisa, a
diretora Alexandra Dias nos propõe um espetáculo que dialoga com outras
linguagens artísticas, rompendo com as barreiras limitantes entre as diversas
artes. Além do texto do escritor russo, o grupo utilizou textos de Rubens
Figueiredo e Robert Patrick para compor a dramaturgia do espetáculo. Além disso, a história era costurada por
momentos, relatos e vivências pessoais de cada ator, dialogando com as
passagens textuais dessas obras literárias, com o intuito de refletirem sobre o
fazer teatral e a condição do artista no mundo contemporâneo.
Com um caráter
de intervenção cênica no espaço público da cidade, o grupo propõe aos
espectadores, além de outras abordagens, a discussão sobre qual o papel e o
lugar do ator na sociedade. Essas reflexões acabavam sendo potencializadas pelo
fato de estarmos assistindo a todos esses fatos, tendo como cenário de fundo um
belo teatro, construído no século XIX, que hoje permanece fechado e
representando o descaso que as artes cênicas sofrem nas políticas atuais.
O trabalho que
os atores tiveram em se expor da maneira corajosa como fizeram, desvelando suas
fraquezas pessoais, propiciou aos espectadores uma aproximação de histórias de
vida que se identificam com os conflitos dos personagens literários. Esse tipo
de diálogo entre ficção e realidade, relatos pessoais e textos dramatúrgicos
vem sendo utilizado em diversos trabalhos artísticos que desejam desassossegar
o espectador do seu olhar viciado nas estruturas formais e tradicionais das
artes. Essas propostas além de oferecem ao público uma relação mais próxima com
o contexto representado, lhe fomentam uma percepção diferenciada, um outro modo
de encarar e se relacionar com os mais diversos tipos de situações que
acontecem a sua volta.
Nesse sentido, muitas vezes um espetáculo não
precisa de palavras e expressões textuais, uma vez que suas imagens podem dar
vazão a uma série de abordagens e os artistas não necessitam delimitá-las
dentro de um contexto definido. Por esse motivo, a opção pode ser pela
exposição dessas imagens e deixá-las para que o público vá compondo os espaços
lacunares, conforme é tocado naquele momento.
Sendo assim, o
trabalho em questão nos expôs uma série de imagens lindas, não apenas nas
projeções, mas também na movimentação dos atores e na maneira como eles se
relacionavam com todos os signos que estavam ali sendo expostos. Desse modo,
não posso deixar de elogiar a maneira como o grupo se apropriou e re-significou
alguns quadros surrealistas, do pintor belga René Magritte, brindando a plateia
com outras possibilidades de leituras daquelas obras e do peso que essas
imagens imprimiam no contexto do espetáculo.
O figurino elaborado por Larissa Martins vinha
muito ao encontro do contexto da peça do dramaturgo russo. Mas, além disso, os
trajes extremamente belos, elegantes e bem acabados já nos chamavam a atenção
no início do espetáculo quando os atores vinham chegando à esplanada em frente
ao teatro. Nesse momento, poderíamos traçar relações sobre a tradição histórica
que a população dessa cidade tinha em se vestir bem para ir ao teatro durante o
século XIX e início do século XX. Porém, agora, essas pessoas disporiam apenas
do espaço ao ar livre para apreciar o espetáculo. Apesar dessa relação textual
e da percepção crítica sobre a situação, os figurinos também dialogavam com as
obras do artista belga utilizado como referência e estavam extremamente
adaptados à funcionalidade cênica de que havia necessidade.
A trilha
sonora original e os vídeos de Thiago Rodeghiero compunham um ambiente no qual,
ao mesmo tempo em que intervinham na paisagem urbana com as projeções, traziam
o foco cênico para as discussões que os atores estavam propondo. A polifonia de
informações da performance era sublinhada e ressaltada pelas projeções muito
pertinentes que ajudavam a ampliar o leque de leitura das imagens apresentadas.
Além disso, o crédito e êxito das projeções também se devem ao fato de fugirem
do lugar comum e simplista que vemos em algumas peças de teatro. A utilização
de filmagem e projeção ao vivo também foi muito interessante para os
espectadores observarem o diálogo entre duas linguagens, enquanto a atriz
Tatiana Duarte apresentava um dos textos mais lindos e difíceis de “A Gaivota”.
A maquiagem
utilizada pelo grupo foi muito adequada ao contexto da concepção de encenação e
à luminosidade que teriam nessa apresentação na rua. A iluminação de Juliano
Bonh Gass fez mágica e mostrou muita criatividade para adaptar os recursos
técnicos para um local ao ar livre que não dispõe de estrutura técnica para
apresentações teatrais à noite. Nesse sentido, todos os recursos foram muito
bem utilizados colaborando para a ambientação e contexto cênico.
O elenco
inteiro está de parabéns pelas suas atuações. Mesmo sendo atores tão jovens,
trabalhando em um espetáculo em que a performance se direciona à multiplicidade
de imagens que compõem à plasticidade cênica, conseguiram trazer seus universos
pessoais para a identificação dos conflitos das personagens daquelas histórias.
Além disso, apesar das adversidades, os atores conseguiram segurar o
espetáculo, mesmo sofrendo interferências desagradáveis de delinquentes que
tentaram prejudicar a apresentação.
Mais uma vez,
sou obrigado a falar da falta de educação de algumas pessoas em relação aos
espetáculos que são apresentados em Pelotas. Nesse caso, por ser uma performance
ao ar livre, os artistas já sabem que estarão expostos a quaisquer adversidades
que possam vir a acontecer. Entretanto, isso não justifica que algumas pessoas
se julguem donas do espaço público e se outorguem o direito de agredirem não
apenas quem está se apresentando, como também quem está assistindo àquela obra.
O fato em
questão se refere a mais de uma dúzia de jovens que estavam naquele local e não
queriam permitir que houvesse uma apresentação teatral naquele espaço, pois
desejavam utilizá-lo para dançar e cantar rap
e hip hop. Em primeiro lugar, a Praça
Cel. Pedro Osório é um espaço imenso e essas pessoas poderiam ter ido se
expressar em outro ponto da praça, uma vez que o grupo de atores possuía
liberação da prefeitura para apresentar o espetáculo naquele local, ou,
simplesmente, se sentarem e apreciarem o evento. Além disso, a quantidade de
bebidas alcoólicas que aqueles jovens faziam questão de mostrar que estavam
ingerindo, não nos ilustrava que o seu intuito era apenas de expressar as suas
músicas.
Não foram
poucas as vezes que eles gritaram e tentaram atrapalhar a encenação, dizendo
que queriam rap e se utilizavam do
fato desse tipo de expressão estar associada às pessoas de classe social menos
favorecida para tentarem intimidar a plateia a não reclamar. Acredito que seja
muito fácil e cômodo se colocar no lugar e no papel de injustiçado quando não
se respeita o espaço dos outros. Pela quantidade de bebidas alcoólicas que
passavam de mão em mão e as dimensões espaciais da praça, também não acredito
que aqueles jovens estivessem apenas com o intuito de se relacionarem com a
arte. Antes de tudo, se desejam ter o seu espaço, precisam saber respeitar o
olhar do outro em querer desfrutar de outras expressões artísticas.
Apesar de a
plateia ter presenteado esses jovens com a indiferença, para que pudessem
assistir ao espetáculo, financiado pelo poder público, acredito que os
espectadores pelotenses não possam continuar sendo expostos a esse tipo de
situação nas apresentações ao ar livre. Sendo assim, saliento o meu protesto
quanto à ausência de guardas municipais e/ou da brigada militar durante o
evento.
Essa
interferência foi tirada de letra pelo grupo de artistas e acabou se tornando
apenas mais um ruído desagradável que vinha de fora do ambiente cênico. Mas, em
nada afetaram à qualidade do trabalho que ali foi apresentado.
Portanto,
considero que a proposta trazida em “Olhar do Outro” seja de grande valia para
as discussões do papel dos atores na nossa cidade e da maneira como as
políticas culturais não vêem tendo a devida importância nesse município. Nesse
sentido, espero que o grupo ainda possa apresentar esse espetáculo, de maneira
segura, em outras ocasiões para que mais pessoas possam ter contato com esse
diálogo híbrido entre as artes.
MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
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