quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Procuram-se Espectadores para Teatro

          O Centro de Treinamento do Grupo Tholl, além das funções pertinentes a sua trupe, passou a agregar o fluxo de produção teatral que chega até Pelotas. Como o Theatro Sete de Abril está fechado, o Theatro Avenida ruindo, o Teatro do COP funcionando como espaço de aprendizado para os alunos das faculdades de teatro e dança da UFPEL e o Teatro Guarany recebendo grandes produções, o espaço do Grupo Tholl se tornou a opção para receber espetáculos teatrais que não tenham nomes televisivos figurando em seus elencos.

          Obviamente, já passaram por esse espaço artistas que trabalham em cinema e TV. Entretanto, a “casa de espetáculos” localizada nas imediações da zona do porto passou a receber peças de teatro produzidas no interior do Rio Grande do Sul e produções que não dispõem de patrocinadores que viabilizem suas apresentações em teatros maiores e mais centralizados. Apesar disso, na noite de 27 de setembro de 2011, apenas 15 pessoas foram até o Centro de Treinamento do Grupo Tholl para assistirem ao espetáculo “Sucesso a Qualquer Preço”, do Grupo Ação de Experimentação Cênica, oriundo da cidade de Santa Maria/RS.

          Com direção de Antônio Orellana, concepção de luz de Gabriela Amado, operação de luz de Maurílio Bertazzo, operação de som de Mariana Lohmann, figurinos de Adriana Dal Forno e produção de Lia Procati, a peça inspirada na obra de David Mamet, traz como seu mote a concorrência no mercado de trabalho. Ao chegarmos à plateia, nos deparamos com um cenário não realista, mas, apesar disso, percebia-se que o diretor queria partir desse fato para caracterizar aquele ambiente da maneira mais realista possível. A iluminação e a forma como alguns elementos de cena foram utilizados me lembraram o espetáculo “Aqueles Dois”, da Cia Luna Luneira que esteve em Pelotas ano passado. Porém, o grupo de Santa Maria não soube utilizar a iluminação e o cenário com a mesma maestria do grupo mineiro.

          A concepção de encenação está limpa, tendendo ao realismo e buscando dar ritmo à cena, conforme a energia de entradas e/ou saídas dos personagens. Além disso, o recurso de distanciamento utilizado foi bem pertinente ao promover uma aproximação dos atores com os espectadores no início do espetáculo, já preparando-os para as situações que viriam a ocorrer ao longo da história.

          O elenco formado por Antônio Orellana, Djefri Ramon, Gabriel Araújo, Gelton Quadros, Marcos Caye e Tatiana Vinadé é bastante jovem e com muita vontade de estar em cena. Devido ao fato desse espetáculo ser fruto de uma disciplina de graduação, na modalidade de bacharelado em Artes Cênicas, da Universidade Federal de Santa Maria, ainda percebemos que alguns aspectos não maduros na montagem se devem à pouca experiência do grupo, ou, possivelmente, às questões que estavam sendo trabalhadas na disciplina onde essa peça foi criada. Todavia, já é possível observar nesse grupo a busca por uma identidade estética para o seu trabalho, em especial, no que se refere à concepção de encenação e à direção do espetáculo.

          Quanto às atuações, acredito que ainda falte um pouco de tranqüilidade e maturidade para que os atores consigam desfrutar dos minutos de prazer que o artista tem quando está em cena. Mesmo assim, se observa que há a busca por um trabalho e pela formação desses atores. Acredito que a experiência de jovens atores se proporem a montar textos, sem a preocupação com o mercado de espetáculos comerciais, seja sempre válida. Entretanto, no caso desse espetáculo, há um quociente comercial muito grande, uma vez que, ao tratar de relações e disputas entre vendedores, essas situações podem ser extrapoladas para quaisquer outras profissões, o que facilitaria muito a venda desse espetáculo para diversas empresas, com o intuito de discutir as relações trabalhistas.

          Além disso, a adaptação poderia ter focado na crise hipotecária que recentemente afetou os Estados Unidos, com o intuito de transpor os fatos para uma situação contemporânea recente, já que a história se passa nesse país. Não obstante, essa é apenas uma opinião particular, já que a opção por não datar a montagem em nada afeta o seu impacto e a sua validade. O espetáculo funciona comercialmente. Contudo, acredito que ainda precise passar por um tempo de maturação para emergir com a força cênica pertinente às temáticas relacionadas às relações humanas.

          Por outro lado, apesar de Pelotas ter mais de 300 mil habitantes, cursos de graduação e pós-graduação nas áreas ligadas às artes, haviam apenas 15 pessoas na plateia desse espetáculo! Na mesma semana em que ocorrem os festejos pela inauguração da cortina do Teatro Guarany, com casa lotada, uma peça de teatro tem sua plateia quase vazia. Pelotas tem a fama e tradição de ser uma cidade com apreço cultural. Porém, será que essa realidade não ficou apenas no século XIX? Ou o público pelotense só frequenta os teatros localizados no centro da cidade? Além disso, será que os pelotenses só vão ao teatro para verem os artistas da novela, sem nem ao menos significarem o conteúdo do espetáculo que será apresentado?

          Esses questionamentos me parecem pertinentes não somente entre artistas, mas à mídia, aos educadores e à população pelotense em geral. Nesse sentido, termino esse texto lamentando os poucos espectadores que haviam na plateia dessa peça de teatro e esperando que as políticas culturais voltadas ao teatro estejam entre as prioridades de todos os governos que passem por essa cidade.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br http://www.ccetp.blogspot.com/

sábado, 10 de setembro de 2011

Da Academia à Vida Artística – Um Longo Caminho de Libertação ao Teatro!

          Mais uma vez, o Centro de Treinamento do Grupo Tholl serviu de local pra a apresentação de um espetáculo de teatro em Pelotas. No dia 19 de junho de 2011, foi apresentado o espetáculo “As Linhas de Elise”, uma adaptação do texto “Por Elise”, de Grace Passô, também responsável pela concepção cênica. Além disso, a equipe contava com a direção, adaptação e trilha sonora de Mariana Lohmann, projeção de Marcos Caye, iluminação de Vinícius Blacon, contra-regragem de Nelson Helo e Gustavo Scherer, este último também responsável pela maquiagem dos atores.

          A peça conta a história de Elise, uma dona de casa que revive as memórias dos seus vizinhos, utilizando como fio condutor dos fatos, a metáfora do ritmo de uma estação de trem, onde vidas se cruzam para seguirem novos caminhos, tecendo uma narrativa nem um pouco realista. As histórias envolvem temáticas relacionadas às relações humanas e a super proteção pelo medo de se envolver com o mundo, construindo uma dramaturgia fora do convencional.

          Esse espetáculo foi concebido por egressos da faculdade de teatro da Universidade de Santa Maria/RS, oriundo do trabalho de conclusão de curso de Mariana Lohmann. Indubitavelmente, percebe-se que houve uma proposta de concepção para encenação bem elaborada e pensada nos seus mínimos aspectos. A direção optou por utilizar o espaço cênico com múltiplas possibilidades para as entradas e saídas dos personagens, direcionamento de cenas que ocorriam dinamicamente pelo meio da plateia e recursos de projeção. Possivelmente, essa opção foi criada com o intuito de ser mais um elemento que corroborasse à ênfase da proposta de dramaturgia não realista que foi empregada. Devido aos custos e às dificuldades técnicas, o teatro gaúcho pouco utiliza o recurso de projeções, quando as propostas cênicas permitem esse tipo de tecnologia em cena. Por esse motivo, quando o público vê o diálogo com outras mídias na cena teatral, costuma sair encantado. Entretanto, os recursos tecnológicos nem sempre são bem empregados nos espetáculos nacionais. Muitas vezes, apenas são utilizados para dizer que ali estão. O que não foi o caso em “As Linhas de Elise”, pois a direção utilizou essa ferramenta de maneira ponderada e eficaz.

          O título desse texto não foi posto por mero acaso, pois, após assistir a essa peça, fiquei refletindo sobre o excesso de técnica que às vezes carregamos para o momento da comunhão com o público. Me refiro a esse aspecto, uma vez que o elenco composto por Antônio Orellana, Amanda Hoffmann, Douglas Jung, Elis Genro, Ícaro Costa, Nelson Girard e Marcos Caye se mostrava bastante jovem, vigoroso e com uma gama imensa de técnicas recém aprendidas na academia. Um dos grandes desafios de um artista quando passa pela academia é saber dosar entre a técnica e a arte. Os recursos técnicos de atuação, sejam eles quais forem e/ou ligados a poética que forem, devem ser apenas ferramentas que ampliaram nosso repertório estético e criativo, para permitirem outras possibilidades quando partimos para a arte.

          Obviamente, esse tipo de percepção somente a maturidade nos confere. Entretanto, ao observar aqueles jovens atores e reconhecer as bases de seu trabalho, percebia o quão técnicos eles estavam sendo, o quanto haviam estudado e se dedicado para transfigurarem em seus corpos aquelas habilidades. Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual não consegui me envolver emocionalmente com o espetáculo, pois as correntes acadêmicas ainda estavam muito arraigadas nos corpos daquele elenco. A academia e os cursos livres de formação de atores lhe fornecem mecanismos teóricos e técnicos para que, no futuro, o profissional que tenha vocação para o teatro, venha a utilizá-los de maneira que lhes permita outra abordagem criativa. Porém, o grande desafio para os artistas inexperientes é conseguir fazer com que a técnica fique imperceptível ao público, uma vez que teorias e conceitos do trabalho prático dos atores se direcionam apenas aos trabalhadores desse setor.

          Por sua vez, os espectadores saem de suas casas e vão ao teatro para verem uma história ser contada, entrarem naquela atmosfera imaginária e se envolverem com as situações vividas pelos personagens, não para saberem quais teorias nortearam o processo criativo dos atores, nem tampouco qual a técnica utilizada por eles. Aqueles que desejam obter essas informações, costumam procurar o elenco após as apresentações e dialogar sobre esses assuntos. Entretanto, de um modo geral, o público quer ver teatro e não demonstrações técnicas.

          Em contrapartida, não quero que esse comentário soe como crítica negativa ao trabalho dos atores. Muito pelo contrário, pois todos mostravam um bom nivelamento das atuações, estando muito entregues às cenas e com um material bruto ainda por ser lapidado. Nesse sentido, tenho certeza de que a maturidade irá aprimorar ainda mais as qualidades daqueles jovens artistas e ainda teremos o prazer de assistir a outros espetáculos em que estejam atuando.

          Portanto, gostaria de finalizar esse texto dizendo que a ida ao teatro é sempre válida e que o público pelotense precisa voltar a frequentar os eventos culturais dessa cidade. Durante muitas décadas, os pelotenses eram reconhecidos como pessoas que consumiam muita cultura. No entanto, o que vemos atualmente é que as artes deixaram de fazer parte do cardápio da população pelotense. Sendo assim, termino esse texto ainda esperando ver o público dessa cidade mais motivado a frequentar os espetáculos teatrais que por aqui passarem.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Alteridade Confrontada na Comédia dos Erros de Shakespeare

          O público formava uma grande fila que se estendia até à rua. Muitas pessoas aguardavam antes do horário para assistirem ao espetáculo “A Comédia dos Erros”, clássico de Wiliam Shakespeare, apresentado pela Cia Stravaganza, de Porto Alegre/RS, no dia 28 de Agosto de 2011, no Centro de Treinamento do Grupo Tholl.

          Com primorosa direção da experiente Adriane Mottola, o espetáculo propunha uma disposição do espaço cênico diferenciada do tradicional palco italiano. Logo que os espectadores entravam, eram confrontados com um mercado público, com signos que remetiam aos comércios populares do oriente médio. Os personagens da história recebiam o público, oferecendo-lhes alguns produtos que estavam à venda durante a peça.

          O cenário é disposto de maneira horizontal, espalhado entre os assentos da plateia, conferindo um aspecto de rua, já inserindo os espectadores dentro da atmosfera dessa feira pública onde as histórias se desenrolam, muitas identidades surgem, desaparecem e se transformam ao longo de, aproximadamente, 100 minutos. Aliás, identidade é justamente o mote inicial do discurso que principia o espetáculo.

          As luzes se apagam e surge uma Drag Queen, a famosa celebridade de showbiz do entretenimento noturno gaúcho Laurita Leão, criada pelo excelente ator Lauro Ramalho. Laurita começa o espetáculo falando sobre identidades de pessoas, coisas, lugares e refletindo sobre a noção epistemológica e conceitual que essa temática aborda. A personagem nos fala sobre a reconciliação com a imagem que criamos de nós mesmos, no entanto essa identificação permanece inquietante e continuamente desconhecida e em criação, enquanto o tempo passa. Durante todo esse discurso, a Drag Queen vai se “desmontando” aos olhos dos espectadores, deixando desaparecer a imagem de superficialidade burlesca, enquanto surge a personalidade do ator Lauro Ramalho que se reconstroi na caracterização de um velho comerciante, seu novo personagem, ou sua nova identidade naquela história.

          O desprendimento que esse ator teve, para revelar sua fragilidade por de trás do escudo que a primeira figura lhe imprime, enquanto se expõe como ator, para logo após ilustrar a construção de seu novo personagem, demonstra um exercício de humildade, coragem e entrega verdadeira que apenas os grandes artistas conseguem comungar com o seu público. Esse é apenas o assunto inicial que a adaptação da Cia porto-alegrense usou para situar o público na temática relacionada ao texto escrito originalmente no século XVII. Apesar de ser um texto tão antigo, seus questionamentos ultrapassaram todos esses séculos e essa proposta teatral adaptada para um outro contexto conseguiu aproximar ainda mais os ali presentes, da história que lhes estava sendo contada.

          Não posso deixar de tecer elogios às concepções de figurinos, cenário, elementos de cena, iluminação e sonoplastia, pois todos esses aspectos nos saltavam os olhos para a percepção do requinte de uma proposta de encenação muito bem elaborada. Não apenas os detalhes dos figurinos, mas também a própria paleta de cores utilizada permitia imprimir uma identidade visual não apenas a cada personagem, mas ao espetáculo como um todo. Nenhum elemento que surgiu em cena estava ali sem um propósito contextualizado na encenação. Não foram necessários elementos alegóricos, nem grandes ornamentações que exibem apenas uma ornamentação cênica vazia. Muito pelo contrário, o trabalho da equipe técnica desse espetáculo é preciso, adequado, pertinente e funcional.

          O texto conta uma história de uma troca de bebês que acabam se cruzando no futuro, tendo suas identidades confundidas ao longo de uma série de situações que vão construindo o enredo divertido da história Shakespeariana. Embora o texto seja excelente, nesse caso, a sua transposição para a linguagem teatral só obteve o devido êxito, pois o elenco composto por Carlos Alexandre, Gustavo Curti, Sofia Salvatori, Fernando Kike Barbosa, Lauro Ramalho, Janaína Pelizzon, Adelino Costa, Rodrigo Melo, Anita Coronel, Rafael Guerra e Vanise Carneiro estava extremamente afinado. Os atores souberam dialogar com a plateia, mantendo o ritmo e o envolvimento com os espectadores durante toda a peça.

          A meu ver, tivemos o deleite de assistir a dois espetáculos. O primeiro contendo o discurso filosófico e antropológico conduzido pelo grande ator Lauro Ramalho. O segundo continha todas as peripécias da história criada pelo dramaturgo inglês e desempenhada de maneira competente pelo elenco da Cia Rústica. Nos últimos anos, tenho observado que sempre que um texto de Shakespeare vem a Pelotas, o teatro não apenas lota, como o público gosta muito do que lhe é apresentado.

          Considero que Shakespeare sempre é uma boa pedida. Porém, os textos desse autor costumam ser muito temidos, pois não é qualquer elenco, nem diretor que consegue segurar a profundidade de seus diálogos, críticas e abordagens temáticas. Nesse sentido, finalizo re-enfatizando a grande ideia desse grupo ao aliar o mote da “Comédia dos Erros”, ao discurso sobre identidade enquanto observamos a transformação de um artista em cena, nos levando a refletir sobre as muitas identidades que vamos construindo e assumindo ao longo de nossas vidas.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Palavras nu corpo da plateia perdida em palavras nu corpo

                              Por Carlos Cogoy


Tire a roupa. Cada peça um código. Tire a lógica. Cada código uma barreira. Tire e queda.
Jocasta arrasta ou está presa? Sua cauda em tecido, tanto prende quanto projeta a infinitude.
Édipo reclama sua sina. Estupefato, clássico, dialoga com o imponderável. Édipo fala, apenas...
Grão, fartura do pouco, recorte do todo. Um dedo de Sófocles. Cerimônia contida.
Abruptamente a cena engasga. Elas invadem a concha grega. Trapos, cores, voz mambembe.
Na plateia, Édipo e Jocasta. A solenidade vira praça. Histriônica, atrevida, a arte popular debocha, ri, mas pergunta...
Como alguém formado em teatro, pretende sobreviver na tragédia capitalista?
Boneca gira, circula, flerta. Aos espectadores, em pé, ela mima, agrada, sorri e diz que gosta.
Mulher popular, tetas caídas. O carrinho das tralhas está num canto. Retoma o sarcasmo...
Satiriza sobre o teatro-compromisso, arte social. É preciso o teatro nas comunidades. Será mesmo?
Eros contempla, nada diz. Sem palavras. Sem roupa. Adornado por alfaces. Levanta e some... Tânatos ligou?
Primeiro ato, ou cena, ou falha, ou fragmento. Primeiro véu da primeira turma de teatro da UFPel. Polifônico número um.
Num daqueles galpões da Tamandaré, reaproveitado pela universidade pública, metros de ‘encerado’ demarcando territórios, moldando ambientes, insinuando labirinto. Trama no espaço, códigos revisitados, Shakespeare no espelho.
Sala de espera, cadeiras, público chega. Quem se re-conhece, acena, sorri, aguarda. O som é bom.
Flávio Dornelles, microfone suspenso. Como personagem, recepciona a plateia daquela noite. Leva-nos até o primeiro encontro. Ali, sagacidade do prof. Adriano Moraes, vimos o dito. Gregos, arte popular, academia... Prosseguir é preciso. Prosseguir é questionar...
Cautelosos, curiosos, passos no escuro. Abre-se o véu, concha de vidro, útero transparente, bolha estética.
Nudez acrobática. Arauto que se contorce, retorce, voa, revida olhares. Ao corpo nu resta despir a criação. Se já não há o que ver, basta ouvir... O corpo da linguagem, num tratado que revira códigos. Teatro-castigo expele o acrobata das palavras. Espectadores em pé...
Menina, mulher, Frida Clown. A brincadeira pueril, a voz dos gestos, Lucia Berndt declama, cala, corre, mira espelho que reflete espectadores à espera de um código...
Desce escada, equilibra-se sobre tonel. Na boca, torrente poética que apela ao desconforto. Maurício Rodrigues, traje em frangalhos, sobe estrados, desce, pendura-se.
Lady MacBeth aparece num extremo do galpão. Reverencia o altar da sua dor. Lamentos à luz de velas. Joice Lima exaspera, polifônica.
Espectadores entreolham-se, desviam olhares, tateiam o próximo passo... Peregrinos num labirinto de mil vozes. Abandonados ao seu peso, o corpo desconfortável não acompanha ideias nem ideais.
Sob o foco da lâmpada, ela está sentada. Formal, acende cigarro. Valéria Fabres mira os mais próximos. Destila o segredo da “professora” lasciva. Fulmina com detalhes. Nas palavras, corpo que não se conforma, pede, deseja. Confidencia prazer, revela o que não se diz.
Encontro, fragmento, cena, calvário, estão pontuados por trilha ao vivo. Sonoridades, percussão, efeitos. Nalguns momentos, a batida sobrepõe vozes. Nalguns momentos, o
som é o cenário... Como “cenógrafos” sonoros, Daniel Medeiros, Cleber Vaz e Eugênio Bassi.
Partida de futebol, tumulto, protesto, atentado, à frente o invisível é turbulento. Os espectadores, Inácio Schardosim e Patrícia Vaz, pulam, manifestam-se, inquietam-se. Porém, estão à margem. Movimentam-se no interior de uma estrutura de metal, que tanto remete à plateia quanto a impossibilidade de protagonizar. Somos torcedores, reagimos ao que chega pelo olhar. Espectadores não interferem, respondem para o nada. Fantoches das sombras. E os espectadores que desviam dos estrados, espiam entre as frestas dos obstáculos?
Ninguém avisou, o espetáculo acabou. Lentamente, desconfiando, público arreda o “encerado” e vislumbra atores, equipe técnica. À saída, aguardam pela despedida. Sobre tablado, perfilados, posicionam-se diante dos espectadores daquela noite. Por lá, Beatriz Araújo, Sheila Hameister, Luiz Dalla Rosa, Augusto, Deisi...
Adriano menciona propósitos. Questionamentos, ressalta. No local que já sediou o Tholl, arte muito além da pirotecnia, pulos e malabares.
Construção física de um curso que, até pouco tempo parecia distante. Desconstrução lírica de uma estética exausta. Muitos sons, imagens polifônicas. E o número 2, quais sons? Tantas palavras para quais mensagens? E depois das mensagens? E palavras são piruetas? E a tragédia capitalista virou comédia? E o oprimido virou chavão estético? Espectadores... de quem?
Sem tempo, sem palco, sem assentos. Sem vergonha de reinventar, possibilidades reviradas no galpão de cada espectador.
Ana Alice Muller como Jocasta. Célio Soares Jr. como Édipo. Neusa Kuhn como artista de rua. Vanessa Martins, a boneca-criança.
Equipe também com Gê Fonseca e Larissa Martins (cenários, figurinos e adereços), Elias Pintanel e Mauricio Mezzomo (atores convidados), Éderson Pestana (contra-
regra), Luis Carlos Ramos Heinrich, Éderson (logística e administração do espaço), Cleomar, Diego, Alisson, Luis Fernando, Adão, Roger, Luis “Toco” Ismar, Cauê, Fernando, Niltom “Sorriso” (serviços gerais), Giovani, Tiago (pintores), Selmar (eletricista), Vanessa (limpeza), Elenara, Suellem, Silva, Michel, José Carlos e Alex (portaria/segurança).

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Teatro de Rua Requer Fôlego e Técnica

         A tarde era ensolarada, a temperatura agradável e a Praça Coronel Pedro Osório estava repleta de pessoas que esperavam ansiosamente em frente ao Chafariz das Nereidas para assistirem ao espetáculo “A Bola e a Roda”, no dia 11 de Junho de 2011. Um pouco antes de escurecer, os músicos Tato Ribeiro e Zé Menna surgiram no palco apresentando seus personagens Auscultador e Viajante.

        O espetáculo conta a história de dois indivíduos que levam suas vidas passeando pelo universo, levando música e poesia aos locais aonde chegam com seu veículo de transporte. O personagem Auscultador é uma espécie de cientista que conserva em pequenos frascos alguns sons emitidos ao redor do mundo. Já o Viajante, é um inventor que roda o planeta criando lugares para suprir a sua necessidade de descobrir novos espaços.

        Logo que chegávamos à praça, percebíamos uma estrutura cênica montada ao lado do chafariz contendo uma espécie de bicicleta, com uma estrutura conjugada que lembrava uma barraca de vendedores ambulantes. Assim que o espetáculo inicia e aquela estrutura nos é revelada, percebemos que existe uma série de obras de arte produzidas por diversos artistas e que compõem uma espécie de souvenires arrecadados durante as viagens dos personagens. Além disso, dentro dessa estrutura ainda continham todos os elementos de cena que seriam utilizados pelos artistas durante a peça.

        Com uma intenção de direcionar esse espetáculo ao público infantil, percebia-se que a opção de explorar cores primárias e uma paleta diversificada pretendia chamar atenção desses espectadores não apenas para os elementos de cena, mas, também, para o figurino. Apesar de serem bastante ilustrativos e demonstrarem que havia um trabalho de concepção com o intuito de criar uma identidade estética ao espetáculo, talvez a maneira como tenham sido confeccionados não tenha conseguido imprimir a noção de identificação que o universo imaginário infantil exige. Essa percepção ficou evidente, pois a sobriedade dos figurinos se sobrepôs à criatividade da proposta.

        Se o espetáculo fosse apenas um show com músicas de temática infantis, teria funcionado com muito mais força. Digo isso, pois a trilha sonora, originalmente composta pelos dois intérpretes, agradava facilmente à plateia, em especial às crianças presentes. Com rimas e refrões interessantes que dialogavam diretamente com o lúdico infantil, as músicas também prendiam a atenção dos adultos ali presentes. Entretanto, como dizemos em teatro: “A peça não saiu do palco” e, assim como a peça, também “As músicas não saíram do palco”. De certa forma, isso frustrou a plateia infantil que estava ávida e aberta ao diálogo cênico com os intérpretes. Porém, acredito que o nervosismo da estréia, o fato de ser uma apresentação na rua e a própria linguagem teatral, tenham afetado a relação artista x espectador. Com isso, os músicos não conseguiam levar o jogo cênico a uma relação de diálogo direto com a plateia, assim como o teatro de rua necessita.

        A partir do momento em que os artistas levam seus espetáculos às ruas, devem estar aptos e alertas a todas as possibilidades de relação que serão geradas com as pessoas que por ali passarem. Não apenas isso, teatro na rua precisa ser feito por atores muito bem preparados físico e vocalmente, além de estarem sempre alertas a todas as situações e imprevistos que a rua pode lhes oferecer. Além disso, teatro de rua exige time e disponibilidade para o jogo cênico com os espectadores, a fim de que eles se interessem pela história que será apresentada e decidam parar para assisti-la. Infelizmente, faltaram alguns desses aspectos em “A Bola e a Roda”, pois os intérpretes não conseguiam estabelecer uma relação de diálogo com a plateia, nem tampouco tinham fôlego e disponibilidade física para sustentarem um espetáculo com essa proposta. Talvez, isso se deva ao fato desse elenco não ser composto por atores. A qualidade musical da trilha sonora é inquestionável, porém a teatralidade da encenação ficou a desejar.

        No entanto, apesar do espetáculo ter uma boa proposta de concepção estética e uma ótima trilha sonora, ele não funcionou como espetáculo teatral. Todavia, não podemos deixar de elogiar a produção do espetáculo que conseguiu mobilizar uma grande quantidade de profissionais das mais diversas mídias para cobrirem a apresentação. Além disso, há que se ressaltar o valor do esforço e empenho de uma produção genuinamente pelotense montada de forma independente, sem patrocínios, nem apoios institucionais.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

domingo, 12 de junho de 2011

O Palco Não é Lugar Para os Sem Talento

        Os temores, conflitos e ansiedades que perseguem os atores antes de entrarem em cena, conduzem ao mote inicial do espetáculo “O Terceiro Sinal”, apresentado pela Cia BR-116, no dia 02 de junho, no Teatro Guarany, em Pelotas/RS. O monólogo conta com a brilhante atuação da atriz Bete Coelho, texto de Otávio Frias Filho e direção de Ricardo Bittencourt.

        O terceiro sinal foi convencionado no meio teatral como o último toque para avisar ao elenco e plateia que o espetáculo irá começar. Nesse sentido, o autor Otávio Frias Filho resolve descrever como são vividos pelos atores os últimos momentos antes de entrarem em cena. Para tanto, Otávio se colocou na experiência de ingressar no elenco de uma peça de teatro, três dias antes da apresentação, dirigida por um dos maiores diretores de teatro do Brasil: José Celso Martinez Correa. Em sua vivência, que originou o livro “Queda Livre: Ensaios de Risco”, o escritor não apenas retrata o trabalho dos atores, bem como desmistifica ao grande público certos detalhes dessa profissão, ao revelá-los para o leitor não apenas como uma mera descrição, mas, também, tecendo uma reflexão sobre o exercício da profissão de ator.

        Em uma das frases ditas pelo personagem, o autor refere que “O palco é o lugar onde a humanidade discute os seus maiores problemas”. Assim, por meio de uma reflexão das dificuldades e peculiaridades do trabalho dos atores, Otávio oferece ao espectador o estímulo para repensarem seus dilemas diários e de como se colocar à prova em novas experiências. A adaptação do livro para o teatro foi muito bem feita, extraindo de maneira precisa o que era essencial para contar essa vivência, transformando o autor do livro em personagem-ator de uma peça de teatro.

        Obviamente que o público em geral se diverte com o espetáculo, pois a história prende a atenção do espectador, apresentando um universo dos bastidores que é desconhecido para as pessoas que não lidam com teatro. Porém, acredito que, para atores e pessoas ligadas às artes cênicas, a peça forneça uma empatia a mais, uma vez que a identificação com várias situações vividas por aquele ator são inevitáveis. Além disso, são citados alguns referenciais teóricos que explicam o trabalho dos atores muitas vezes de maneira paradoxal, ao passo que somente os profissionais dessa área conseguem entender esse ofício. Entretanto, o riso se torna inevitável a qualquer pessoa, tanto para aqueles que estão conhecendo pela primeira vez os dilemas do trabalho dos atores, quanto dos profissionais desse setor que se vêem retratados virtuosisticamente por meio da excelente atriz Bete Coelho.

        A direção de Ricardo Bittencourt é precisa e limpa. Em um espetáculo que utiliza a metalinguagem para falar do ofício teatral, o diretor não apenas dirige as cenas, como também está presente durante o espetáculo. Evidentemente, dirigir Bete Coelho deve trazer uma certa tranqüilidade ao diretor, uma vez que há a certeza de que a atriz irá conduzir qualquer situação com maestria. No entanto, quando se está diante de um talento dessa qualidade, somente um grande diretor para conseguir chegar ao nível de qualidade do trabalho dessa artista. Porém, Ricardo se define como ator e, acredito que justamente por isso, sua mão foi tão precisa nesse espetáculo, já que a discussão proposta se refere às peculiaridades do dia a dia desses profissionais.

        O fato do cenário utilizar em alguns momentos as projeções como seu aliado, desvelar os bastidores de rotunda e coxias trouxe ao espectador a ilustração de que a peça versaria por meio de uma metalinguagem. Desse modo, o público percebia quando o ator estava em cena, quando saía aos bastidores durante a apresentação e quando estava fora do palco antes da performance. Esse jogo cênico criava uma empatia envolvente com o público que não dava vontade de piscar para não perder nenhuma das situações. A dinâmica criada pelo diretor, mesclando as cenas de maneira ágil, afastava totalmente o ar monótono que costuma ocorrer em alguns monólogos. Além disso, o fato de Bete contracenar rapidamente com o diretor e equipe técnica durante o espetáculo propiciava um olhar diferente e distanciado do convencional aos espectadores. Outro aspecto muito preciso foi a iluminação. De concepção muito simples, porém limpa, precisa, extremamente orgânica e funcional com as cenas. No caso desse espetáculo, podíamos perceber que a iluminação foi composta com o intuito de fazer parte da dramaturgia cênica, desempenhando um papel muito importante na criação dos ambientes e situações ocorridas ao longo do espetáculo.

        Agora, tecerei alguns comentários sobre Bete Coelho. Não posso iniciar essa parte, sem citar uma frase do espetáculo que me apropriei para intitular esse texto: “O Palco Não é Lugar Para os Sem Talento”! Nesse caso, talento, competência, profissionalismo, comprometimento e dedicação são o que mais sobram em Bete Coelho. A atriz consegue brilhar em cena, não pela vaidade que muitos atores medíocres usam como sua única ferramenta de auto-afirmação, mas Bete brilha por meio de seu virtuosismo cênico. Como diríamos de maneira coloquial: “Sobrou atriz no palco!”.

        Bete Coelho possui um trabalho muito sofisticado no que se refere ao primor de sua atuação. O seu preparo físico e vocal fica evidente, ao passo que se percebe que o resultado de toda essa disciplina se materializa em um trabalho limpo, capaz de envolver o público durante todo o espetáculo. Talvez essa precisão técnica seja fruto de sua formação artística, aliada ao trabalho com grandes diretores de teatro brasileiro, tais como José Celso Martinez Correa, Gerald Thomas e Antunes Filho. Observando o trabalho de Bete, podemos perceber que existem referenciais de teóricos do teatro como C. Stanislavski, J. Grotowski, E.Barba, dentre outros, que propõem certas metodologias de trabalho para que os atores desenvolvam técnicas que os possibilitem certas habilidades cênicas. Todavia, a atriz sabe utilizar esses referenciais, aliados a algumas técnicas de dança e canto para que todo o seu preparo seja sutil ao olhar dos espectadores, mas que consiga criar uma atmosfera de encantamento e empatia com o público.

        Em cena, o personagem do espetáculo chega a citar que leu esses autores e, em função disso, achava que bastava ter o conhecimento teórico de algumas leituras sobre teatro para lhe capacitar como profissional das artes cênicas. Esse parece ser o primeiro grande equívoco de um leigo a se julgar como ator. Muitas pessoas, por inexperiência e falta de preparo teatral que não seja meramente teórico, costumam vivenciar as angústias tão bem descritas pelo autor da peça e muito bem retratadas no personagem do espetáculo. Alguns profissionais equivocados costumam abrir esses livros e muitos outros de referenciais teóricos em teatro, pensando que basta ler os exercícios para saberem aplicá-los e que os resultados a partir disso serão formadores de um artista. Ator é aquele profissional que tem o embasamento teórico para fundamentar o seu discurso, mas também é aquele profissional que ensina aquilo que sabe, que já viveu, experienciou e que, a qualquer momento, pode chegar ali e mostrar como se faz.

        O problema de um não-artista se intitular no pioneirismo da prática teatral entre seus colegas, incorre nos equívocos cênicos e de concepção do que é o trabalho de um ator. Como exemplo dos autores citados anteriormente, se alguém pegar os seus livros, poderá sair por aí e passar horas e horas trancado em salas de ensaio gritando, se contorcendo, fazendo malabarismos, criando movimentos que são apenas repetitivos, porém vazios de matriz para o trabalho de um ator. Somente um profissional que já viveu essas situações em seu corpo e já as colocou à prova para o público consegue propor o elo de ligação entre a teoria e a realidade da vida prática de um ator. Senão, tudo fica no limiar da suposição e do equívoco. Além disso, muitas pessoas inexperientes nas artes cênicas costumam ler esses referenciais teóricos e pensar que eles são leis irrevogáveis. Entretanto, esse é justamente o primeiro pedido que todos os teóricos de teatro não fazem, uma vez que eles sempre se referem às técnicas e pensamentos que foram úteis às descobertas de seu trabalho, naquele contexto histórico e social, a partir disso, cada um abarca o seu repertório estético e vai em busca de suas verdades. Um bom trabalho em teatro não precisa estar exatamente nos moldes que você encontrará em um livro de teoria do teatro. Por esse motivo, ao observarmos Bete Coelho em cena, temos uma aula de como observar uma atriz com tanto material técnico disponível em seu corpo e tão bem utilizado.

        Nada como o dia a dia em cima de um palco e na presença dos espectadores para formar um ator. O público não é idiota e sabe muito bem perceber quando uma pessoa não é competente e não serve para o ofício artístico. Bete Coelho serve tanto de exemplo para esse caso que consegue interpretar um personagem masculino, não-ator, sair e entrar do personagem fazendo com que o público perceba por meio desse distanciamento cênico suas inúmeras capacidades artísticas. Essa é a magia do trabalho de um profissional competente nas artes cênicas. A capacidade de conseguir imprimir verdade e presença cênica de maneira tão trabalhadas que pareçam naturais, possibilita ao espectador abrir o seu imaginário àquele universo criado pelo evento teatral.

        Como comecei esse texto dizendo que o palco não é lugar para os sem talento, poderei finalizá-lo dizendo que, se eu pudesse criar uma lei, ela diria que no palco só poderiam pisar atores com o talento, técnica e preparo no mesmo nível de Bete Coelho. Ademais, espero que o público pelotense possa ter o privilégio de assistir a outros espetáculos com artistas dessa qualidade durante o ano inteiro.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Máscaras Larvárias: Teatro Físico e Poesia em Cena

        Apesar do frio e da forte chuva que caiu em Pelotas no dia 22 de maio de 2011, um expressivo número de pessoas compareceram ao espaço do Centro de Treinamento do Grupo Tholl, para assistirem ao espetáculo “Larvárias” da Cia do Giro, de Porto Alegre/RS. Durante 60 minutos, o público presente pôde se deleitar com a virtuose do trabalho dos atores Daniela Carmona e Adriano Basegio que multiplicaram seus personagens por meio das máscaras utilizadas em cena.

        O espetáculo “Larvárias” é inspirado na estética das máscaras do Carnaval de Basel (Suíça). Na década de 60, o teatrólogo francês Jacques Lecoq iniciou estudos com essas máscaras adaptado-as para o universo teatral. Posteriormente, além de Lecoq, outras escolas, como a École International Philipphe Gaulier, passaram a desenvolver pesquisas e estabelecer princípios técnicos sobre os aspectos físicos para o trabalho do ator por meio da utilização dessas máscaras em seu trabalho cênico.

        Com direção, concepção e roteiro de Daniela Carmona, a peça fala de encontros e desencontros entre seres não definidos como humanos ou animais. Porém, esses personagens, ao portarem as máscaras-larvas, assumem características intermediárias, contendo peculiaridades de homem e de bicho, sem precisar demonstrar nada de maneira ilustrativa. Na medida em que as máscaras vão surgindo em cena, o espectador começa a perceber determinadas singularidades do cotidiano, seu humor e poesia que são retratadas nas cenas do espetáculo. Não existe uma história realista sendo contada, nem tampouco a dramaturgia cênica se preocupa com a organização simplista das ideias. Muito pelo contrário, em “Larvárias” o espectador percebe que existem muitas lacunas, muitos espaços em branco que deverão ser preenchidos pelas suas percepções dos fatos que estão se desenrolando nas cenas propostas pelo elenco.

        Para aqueles que conhecem o difícil empenho físico que um trabalho com máscaras larvárias exige, sai desse espetáculo rendendo louvores aos atores pelo seu desempenho cênico. Para os leigos, fica a empatia de observar as relações entre aquelas criaturas mascaradas e das possibilidades que esses personagens criam de um imaginário diferenciado do racionalismo tradicionalmente retratado em diversas linguagens artísticas. Além disso, a trilha sonora e a iluminação cênica merecem um destaque especial, uma vez que foram concebidas dramaturgicamente de maneira orgânica com todas as situações, se relacionando diretamente com o jogo cênico entre os atores. Em alguns momentos, parecia que a personagem contracenava com a luz ou com s sonoplastia e vice-versa.

        Tanto Daniela, quanto Adriano são oriundos das escolas de Lecoq e Gaulier, o que possibilitou o rigor técnico e a maestria com que conduzem a peça. Ao assistir “Larvárias”, o espectador pode ir percebendo as situações e transpondo-as para as suas relações diárias. A sutileza com que os atores criam o jogo cênico, nos transporta a um ambiente poético capaz de extrapolar as imagens das máscaras para a vida em sociedade, fomentando um olhar mais lírico para a nossa vida diária.

        Portanto, aqueles que tiveram o prazer de assistir à peça “Larvárias” saíram com a sensação de que estavam diante de um trabalho competente e muito bem concebido nos seus mínimos detalhes. Além disso, espetáculos realizados totalmente com esse tipo de técnica de máscaras são uma raridade e poucas vezes são montados no mundo inteiro, o que torna ainda mais importante a experiência singular vivida pelos espectadores dessa obra.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

9 Mentiras, Uma Verdade e Nada Aconteceu

    No dia 14 de abril, esteve em Pelotas o espetáculo “9 Mentiras Sobre a Verdade”, apresentado no espaço do Grupo Tholl. O monólogo representado pela atriz Vanise Carneiro – vencedora do Prêmio Açorianos de Teatro como melhor atriz de 2010 - com direção de Gilson Vargas e dramaturgia de Diones Camargo lotou o teatro localizado nas imediações do porto de Pelotas.

    A personagem Lara inicia a peça entre os espectadores como se todos estivessem reunidos em um encontro de grupo de apoio para mentirosos compulsivos anônimos. Desse modo, Lara começa a contar sua história e a dialogar com os espectadores sobre algumas questões de sua vida perpassadas por referenciais cinematográficos pouco explorados durante a apresentação.

    Apesar de observarmos que a atriz segura o espetáculo durante os seus mais de 60 minutos, em muitos momentos, as situações não funcionavam, chegando a ficar enfadonhas, uma vez que tentativas de piadas não obtinham a devida resposta do público. A atriz conseguiu imprimir um tom de verossimilhança para a personagem. No entanto, a direção pecou ao não utilizar de maneira mais eficiente o drama interno da personagem em diálogo com os espectadores, já que a atriz se comunicava de maneira natural com a plateia, imprimindo um diálogo próximo, sem forçar nenhum tipo de falso carisma. Muito pelo contrário, Vanise conseguiu cativar a plateia, porém os temas não eram abordados com profundidade. Aliás, esse foi um dos maiores problemas do espetáculo, pois a dramaturgia estava confusa, ou seja, uma diversidade de temas eram expostos por Lara e nenhum era abordado com profundidade. Assim que os espectadores começavam a se envolver com a história que estava sendo contada naquele momento, a personagem iniciava uma explanação sobre outro episódio de sua vida. Desse modo, as situações ficavam soltas, tecendo um fio condutor do espetáculo que apenas tangia a superficialidade dos fatos.

    O cenário era composto por uma cadeira vermelha, utilizada pela atriz mais como suporte para suas roupas do que com alguma funcionalidade cênica importante para o espetáculo. Além disso, outro recurso que foi bastante explorado foram projeções de imagens na rotunda. Acredito que os aparatos tecnológicos atuais, quando bem utilizados, acrescentam muito na ambientação cênica. No entanto, nessa peça, a direção optou por empregar projeções apenas com características figurativas e ilustrativas que, se não tivessem sido utilizadas, não fariam a menor falta na forma como a história se desenvolveu. Mais uma vez, quando apareceu algo interessante, ficou suspenso no ar, pois, próximo ao final do espetáculo, a atriz senta-se na plateia para assistir ao que seria um filme de sua vida. Todavia, a cena não chega a se desenvolver. O vídeo, apesar de mostrar uma imagem em close up da personagem num momento de suposta introspecção, não chega a fazer um link com o que viria depois.

    Em alguns momentos, o espetáculo me parecia uma colcha de retalhos que não haviam sido costurados. Os pequenos cortes estavam presentes, mas o patch work ainda não havia sido tecido. Com isso, me passou a sensação de que, durante mais de 60 minutos, nada aconteceu, pois as histórias eram jogadas na superficialidade e se perdiam sem a devida atenção. Enfatizo esse aspecto, já que várias daquelas histórias continham argumentos para darem um tom de lirismo ou de densidade à peça. Porém, nada acontecia nesse sentido.

    Outra situação que me deixou bastante confuso, foi o fato de sermos avisados na entrada do teatro que o espetáculo já havia começado e, ao chegarmos ao espaço cênico, havia um homem sentado na poltrona vermelha, no meio do palco, com um rosto interrogativo e um foco de luz direta nele. No entanto, após a entrada de todo o público, esse senhor, se levanta, sai do palco e se dirige à mesa de som, atrás da plateia. Ocorre um Black out, se abre um foco de luz na lateral da plateia, onde aparece a atriz sentada no meio do público e “o espetáculo começa”. A pergunta da noite foi: Quem era aquele homem e o que foi aquilo? Mais uma vez, um fato sem explicação, sem abordagem e solto no meio do nada. Não pensem vocês, ao lerem esse texto, de que a peça se tratava de alguma proposta ligada ao teatro do absurdo, pois não era essa a proposta, nem muito menos deixar as informações soltas, o que havia era um equívoco dramatúrgico.

     Não posso me aproximar do final desse texto, sem referir que, atualmente, se não fosse por esforço do SESC, a cidade de Pelotas não estaria recebendo espetáculos de teatro, fora dos padrões televisivos do teatro comercialmente vazio de conteúdo e que lota as platéias massificadas, pagando ingressos caros mais para conhecerem o artista da TV do que para apreciarem uma obra artística. Por mais que o comportamento provinciano da sociedade pelotense continue lotando as plateias das peças de teatro enlatado, o SESC propicia uma oportunidade para que o público tenha acesso à cultura de maneira gratuita ou por meio de ingressos com baixo custo. Desse modo, o SESC acaba atribuindo para si o papel de fomento e acesso à cultura nesse município. No entanto, as equipes de trabalho contratadas para fazerem a produção local de qualquer espetáculo devem ser treinadas para saberem lidar com os espectadores e saberem que, se existe procura por ingressos e interesse em assistir aos espetáculos, isso reflete uma demanda de público ávida por consumir teatro. Sendo assim, não se trata de fazer um favor ao disponibilizar ingressos a essas pessoas, mas sim de atender aos objetivos de fomento à cultura desenvolvida nacionalmente pela empresa.

     Portanto, apesar dos problemas relacionados à dramaturgia, o espetáculo “9 Mentiras Sobre a Verdade” agradou aos presentes. Grande parte dessa empatia se deve ao carisma e ao talento da atriz Vanise Carneiro em conduzir a história por mais de uma hora, sem dispersar a atenção do público presente.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.




quinta-feira, 28 de abril de 2011

DAS NOVE MENTIRAS...

... A ÚNICA VERDADE É A SITUAÇÃO DE INVISIBILIDADE DO DITO SEXO FRÁGIL
por Dagma Colomby
 Com direção de Gilson Vargas, texto de Diones Camargo, encenado e coproduzido por  Vanise Carneiro, o texto 9 Mentiras Sobre a Verdade traz ao palco a história de uma dona de casa que, talvez devido à insatisfação com sua vida, fantasia que é protagonista de filmes famosos e passa tal ideia para as pessoas. Em uma reunião para mentirosos compulsivos ela começa a descobrir a linha tênue entre a fantasia e a realidade, seu complexo de Eléctra, sua condição de mulher invisível. O caráter psicológico do texto de Diones Camargo se evidencia através da apresentação de uma personagem com o comportamento compulsivo de alguém que cria um universo paralelo fugindo, assim, de uma existência quase imperceptível para aqueles com os quais a mesma convive. Provavelmente entre as nove ou mais bravatas proferidas por Lara, a única grande verdade seja a situação de invisibilidade que o universo contemporâneo ainda oferece à figura feminina, quase sempre tão impedida de ser reconhecida, valorizada, estimada, afinal ser mulher, ter cérebro, fazer uso do mesmo não é algo muito apreciado por grande parcela de nossa sociedade, que cria uma infinidade de ardis para solapar a autoestima e valoração da figura feminina que ousa se destacar num mundo onde até a gramática é masculina. A situação de circularidade do texto parece ser usada para ressaltar questões fulcrais e norteadoras da sua condição de mentirosa compulsiva.
 No final há a ruptura com a fantasia vivida pela personagem e esta retoma a sua realidade, se impondo ao meio em que vive, dando um basta à tirania da invisibilidade. Fazer uso do cinzeiro, deixar claro que voltou a fumar é a metáfora da rejeição do soutién, é mostrar o peito, é dizer que não está mais invisível, apática, submissa, talvez quieta, esperando o momento certo de agir, mas jamais aceitando o papel de figurante que não dá o direito à voz.
O espetáculo faz uso de diversos recursos sonoros e visuais, os quais, além de tornar os momentos cênicos mais ricos e aprazíveis à plateia (projeções, gravações, entre outros), atuam como facilitadores da compreensão da montagem. A iluminação, concebida por Fernando Ochoa, estabelece uma espécie de costura entre uma cena e outra, fato que ressalta a interpretação responsável de Vanise Carneiro. A atriz brinca com o universo cinematográfico, permeia a plateia de dúvidas sobre o que é ficção e o que é realidade, faz um uso constante de símbolos, trabalha o teatro dentro do teatro atribui significados inteligentes ao figurino, nada do que a mesma usa fica sem um sentido, aguçando assim a imaginação do espectador. É interessante o jogo de interação proposto à plateia, embora paire a dúvida se há realmente um desejo de que esta tome parte do espetáculo pois, ao mesmo tempo que o espectador é instigado a dar a sua participação, há uma velada coibição de que este se manifeste que se revela no desvio do olhar quando não se quer uma resposta, ou seja, só participa quem, através de uma  provocativa e insistente mirada, é convidado a responder alguma questão; talvez tal jogo tenha tornado a atuação um pouco monótona e não convincente em alguns momentos.
Nove mentiras sobre a verdade, apresenta uma linguagem contemporânea, como opção estética um palco quase nu, traz à cena uma atriz madura e um texto rico, com possibilidades de infinitas leituras e significados. Em todo o conjunto da montagem podemos observar uma direção experiente, que, embora tenha feito uma escolha pautada bem mais no textocentrismo do que na fisicalidade, realiza reflexões bastante pertinentes ao modo de vida da mulher moderna, suas inquietações, receios e desejos. É um espetáculo que vale a pena ser assistido, reassistido, pelo seu conteúdo, forma e abordagem escolhidos e utilizados. 

domingo, 17 de abril de 2011

O Naufrágio do Barquinho

No dia 05 de Abril de 2011, o Grupo Timbre de Galo, da cidade de Passo Fundo/RS, trouxe a Pelotas o espetáculo infantil A Viagem de Um Barquinho, livre adaptação do grupo, baseada na obra de Sylvia Orthof. Durante 50 minutos, os espectadores presentes no auditório externo do Colégio Municipal Pelotense puderam acompanhar o desempenho de um dos grupos de teatro com maior número de montagens teatrais circulando pelo interior do Rio Grande do Sul nos últimos anos.

Para aqueles que conhecem o texto original, ficou evidente que a trupe de artistas optou por fazer grandes cortes no enredo da história, retirando alguns personagens que traziam algumas explicações sobre a temática abordada. No entanto, para manter o ritmo e prender a atenção do público, os artistas optaram por costurar as cenas por meio de músicas que explicavam os próximos acontecimentos ou algumas situações que haviam sido excluídas do texto de Sylvia Orthof. Porém, muitos assuntos importantes foram deixados de fora, impossibilitando que certas temáticas pudessem fomentar discussões futuras entre educadores e educandos ali presentes.

Realmente, a direção musical foi o que havia de melhor nesse espetáculo. Como de costume, o Grupo Timbre de Galo tem seu ponto forte na abordagem musical de suas montagens, o que, em muitos locais, tende a prender a atenção do público. Como esses artistas dedicam suas montagens para apresentações nas ruas, a trilha sonora costuma funcionar como um atrativo para atrair o público. Devido ao fato do elenco ter formação musical, todos os membros do grupo intercalavam-se na execução das músicas ao vivo, ora cantando, ora tocando algum dos instrumentos, ou atuando como um dos personagens da história. Nesse espetáculo em questão, a direção musical optou por adaptar trechos do espetáculo em ritmo de músicas típicas do tradicionalismo gaúcho, intercalando com algumas bem conhecidas nesse estado. No entanto, para o público infantil pelotense de nada adiantou, pois a plateia não se identificou, nem tão pouco se interessou pela trilha musical.

Apesar da versatilidade musical dos atores, alguns personagens perdiam a sua força cênica, ao passo que foram adotadas peculiaridades estereotipadas para caracterizá-los, como, por exemplo, a lavadeira negra, a bailarina branca de cabelos lisos, o sol com vestimentas típicas do tradicionalismo gaúcho e etc... Devido aos cortes textuais, o público infantil não conseguia se fixar no enredo, nem no encadeamento entre as cenas, já que as músicas, ao invés de funcionarem como elo de ligação, acabavam por dispersar as crianças da história que estava sendo contada. Além disso, devido aos estereótipos adotados, os atores não conseguiram atribuir caráter de verossimilhança nos personagens, o que, simplesmente, distraía o público infantil mais para o que acontecia ao seu redor na plateia, do que para o que estava sendo apresentado no palco.

Além disso, a concepção de cenário e figurinos também pecou pela utilização de alguns elementos que não funcionaram ou não foram explorados em cena como poderiam ter sido. Embora tenham utilizado um figurino neutro para atores enquanto executavam as músicas, no momento de atribuir identidade aos personagens que seriam interpretados, foram utilizados elementos que salientavam essas características em demasia, atribuindo um tom over à concepção de cada personagem. Outro aspecto importante que um figurinista deve pensar se refere à escolha dos tecidos utilizados para que eles não reflitam ou alterem sua cor de acordo com a iluminação utilizada, se esse não for o objetivo da montagem. Nesse caso, em vários momentos, os tecidos com brilhos acabaram desviando a atenção do público para o figurino, ao invés de perceberem-no como um todo na concepção do personagem. Nessa perspectiva, também saliento que, mesmo utilizando tecidos brancos como cenário como se fossem varais de roupas que a lavadeira estaria estendendo, essas informações não foram exploradas em cena, fazendo com que os tecidos parecessem apenas uma meia dúzia de panos pendurados no palco.

Uma questão importante de ser salientada se refere aos estereótipos que explicitei anteriormente, uma vez que espetáculos infantis além de oferecerem uma oportunidade para as crianças terem contato com uma obra artística são formadores de opinião. Em pleno século vinte e um, ainda vermos personagens como a negra serviçal ou o gaúcho gay vão totalmente de encontro a todas as conquistas sociais das últimas décadas. Não apenas isso, como também, de certa forma acabam por legitimar certas normatizações sociais que muitos grupos sociais lutam para que caiam por terra. Em função disso, acredito que qualquer tipo de adaptação teatral visando o público infantil deva estar muito bem esclarecida sobre a responsabilidade social da sua obra frente a uma população ainda em processo de formação.

Portanto, apesar dos problemas de concepção, a apresentação do espetáculo A Viagem de Um Barquinho pelo Grupo Timbre de Galo saiu com um saúdo positivo para a cidade de Pelotas, uma vez que há uma grande escassez de montagens teatrais voltadas para o público infantil nessa cidade. Ademais, o contato com obras artísticas é imprescindível para a formação de platéias futuras, pois a conquista de um público futuro se torna muito difícil se ele não está habituado a frequentar teatros, sobretudo no mundo contemporâneo onde a velocidade de informações e difusão de outras linguagens competem diretamente com a linguagem teatral.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com

Ópera: Teatro Musical


Durante o I Festival Internacional SESC de Música em Pelotas, o público local teve o prazer de assistir à Ópera Bastien e Bastienne, de Mozart (1756-1791), no dia 10 de fevereiro de 2010, com a Orquestra Unissinos, sob a regência de Evandro Matté e participação de Elisa Machado (soprano), Flavio Leite (tenor) e Carlos Rodriguez (baixo). Apesar do calor típico dos meses de verão, o Teatro Guarany teve suas dependências lotadas, com fila de espera para assistirem esse espetáculo.

Mozart compôs essa obra ainda na sua infância, talvez por esse motivo a temática abordada seja bastante ingênua, apesar do evidente talento que o jovem compositor já demonstrava quando a compôs aos 12 anos, baseada na peça de Jean Jacques Rousseau, “Le Devin Du Village”. Mesmo se tratando de uma ópera, resolvi tecer alguns comentários sobre esse espetáculo aqui nesse canal, uma vez que as óperas se consagraram como uma das opções de espetáculos teatrais, durante muitos séculos na Europa. Posteriormente, a visão fragmentadora ocidental separou as óperas da sua visão como espetáculo teatral, apenas considerando-as como espetáculos musicais. No entanto, apesar de muitas pessoas persistirem nesse equívoco ainda nos dias de hoje, analisar as óperas sob esse ponto de vista, deixaria margem para desconsiderar todo o teatro musical contemporâneo como linguagem teatral.

Nesse sentido, ao assistirmos uma ópera, não devemos fixar nossos olhares apenas ao prazer de escutar harmonias instrumentais fantásticas, capazes de criarem climas e imprimir toda atmosfera que as cenas necessitam, ou apenas na virtuose vocal, resultado de muito trabalho, estudo e disciplina dos cantores. Os espetáculos de ópera contém histórias das mais variadas origens e abordagens temáticas, além de muitos deles representarem importantes características tanto do teatro, quanto da arte em geral que estava sendo pensada e produzida no momento que essas obras foram escritas. Por esse motivo, me sinto confortável para analisar ao espetáculo apresentado no mês de fevereiro em Pelotas, pois, muitas vezes, o público em geral analisa apenas os aspectos musicais, se esquecendo do espetáculo teatral performado naquele momento.

A montagem pelotense surpreendeu a todos no que se refere a possibilidade de óperas serem montadas nessa cidade, de maneira simples e competente como essa foi realizada, sem necessitar de cenários gigantescos e e centenas de pessoas no elenco. Obviamente, que a simplicidade da obra favoreceu esse fato. Porém, observamos que, com empenho e boa vontade, outros espetáculos operísticos poderiam ser montados em Pelotas. Além disso, o que muitos poderiam justificar é que não existe público para uma montagem considerada “erudita”. No entanto, isso seria um contrasenso, tendo em vista a lotação do teatro e a intensa procura de ingressos para esse espetáculo, o qual já estava com a lotação esgotada no dia da apresentação. Se existe demanda de público, por que não dispomos de outras óperas nessa cidade?

Outro argumento que poderia ser levantado pelos incansáveis rabugentos anti-cultura, seria o de que esse tipo de espetáculo agrada apenas a um público com formação e hábito em apreciar obras eruditas. Todavia, será que a população em geral não teria o desejo de assistir a uma ópera ou não ficaria satisfeito ao assistir uma obra dessas, caso tivesse possibilidade? Muitas pessoas se respaldam no seu preconceito social justificando que o público em geral gosta apenas de expressões artísticas de apelo fácil, mero entretenimento que não lhes permitam nenhum tipo de amplitude estética. Contudo, não é esse o tipo de comentário que qualquer pessoa que nunca havia assistido a uma ópera faz, após o término de uma apresentação. Àqueles que duvidam, os convido a pagarem um ingresso para ópera a uma pessoa que nunca teve o prazer de prestigiar um espetáculo desse tipo e depois perguntem-na sobre o que achou.

Apesar da boa iniciativa na montagem dessa obra na cidade e a possibilidade dela ser oferecida à população de maneira gratuita, observo que o rigor na performance musical não foi mantido no que se refere à performance teatral. Os cantores eram bons. Seria muita ingenuidade de alguém pensar que um cantor se atreveria a cantar uma ópera caso não tivesse formação pra isso. No entanto, me pareceu que o tenor estava gripado, ou, por algum motivo, parecia estar muito exausto durante a apresentação, o que não chegou a afetar sua performance, já que, apesar da aparente debilidade, conseguiu conduzir toda sua apresentação com profissionalismo e competência. Em alguns momentos, me pareceu que o diretor solicitou à soprano que desviasse a sua emissão para outros locais do palco, desviando o foco de atenção da personagem, o que fazia com que o som se perdesse por alguns instantes, dada à péssima acústica do teatro Guarany. O barítono, mesmo quando estava falando, podia ser escutado em todo o teatro, o que foi facilitado pela sua disposição cênica frontal durante toda a peça.

A meu ver, a concepção de encenação do espetáculo foi um equívoco, uma vez que, mesmo desejando quebrar com alguns paradigmas das montagens tradicionais de óperas e tentando propor uma abordagem diferenciada, a estética adotada se perdia na incoerência. O cenário adotado não era funcional, nem apresentava uma justificativa de sê-lo ao apresentar tantas cadeiras agrupadas de forma desordenada em cima de algumas mesas sem a exploração dessa informação ou desse signo que estava tentando ser explicitado. Assim, o cenário funcionou em alguns momentos apenas como passarela para um cantor mais baixo ficar um pouco acima dos outros, sem relação com a situação que estava ocorrendo na cena naquele momento. Além disso, alguns elementos de cena, apenas surgiram no início do espetáculo para serem retirados posteriormente, sem organicidade nenhuma com as cenas do espetáculo.

O figurino era incoerente tanto em sua proposta – se é que havia alguma – quanto em sua funcionalidade. Não havia uma identidade visual para o espetáculo, o figurino não condizia com as cenas. Em alguns momentos, pareciam fantasias “alternativas” para blocos de rua no carnaval. A iluminação estava precária, mal afinada, sem uma proposta condizente com as situações ocorridas durante o espetáculo. Ao levantar essas situações não quero dizer que uma ópera não possa ter concepções diferentes das tradicionais, muito pelo contrário, acredito que o mundo atual oferece uma gama de informações e possibilidades que agregariam muitos fatores positivos a quem se dispor a propor novos olhares sobre obras tão pouco exploradas. Porém, para que esses aspectos sejam realmente postivos e adequados, necessitam estar coerentes tanto em sua concepção, quanto na sua execução.

Outro ponto crítico da direção se refere à proposta de interpretações repletas de canastrices, o que ao invés de representar um estilo interpretativo, adquiria um sentido ridículo à caracterização dos personagens, prejudicando a atuação dos cantores como intérpretes naquele momento. Esse tipo de equívoco se atribui à direção do espetáculo, uma vez que o olhar afastado permitiria ao diretor evitar que essas situações comprometessem a verossimelhança das personagens. Quando abordo esse aspeto das atuações não estou negando a possibilidade de atuações farsescas, clownescas, melodramáticas, bufônicas, caricatas e etc... Porém, o que observamos foi apenas canastrice na concepção de direção, o que isenta o elenco dessa responsabilidade.

Portanto, apesar de alguns problemas relacionados à concepção de encenação, a montagem dessa obra de Mozart foi muito válida, já que nos mostrou que, em Pelotas, existe material humano de sobra e com talento suficiente para montarem outras óperas e espetáculos com outras abordagens musicais para os mais diferentes públicos. Considero positiva a iniciativa do SESC em oferecer esse tipo de espetáculo de maneira gratuita à população local e espero que essa tenha sido apenas a primeira de muitas outras óperas levadas aos palcos pelotenses de maneira gratuita para democrtizar o acesso do público a esse tipo de obra.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.
vagnervarg@yahoo.com.br www.ccetp.blogspot.com